Figurativização

O enunciado melódico parece ser a mais extensa unidade da hierarquia melódica. Isto quer dizer que, partindo do elemento terminal, a nota, ascendemos na estrutura melódica passando pelo pulso, pela célula, e chegamos ao enunciado, para além da qual não encontramos mais estruturas baseadas em dependências internas.

O fato de constatarmos a existência de tal estrutura em inúmeras canções (todas as canções vistas até aqui) não implica que toda canção seja redutível a ela. De fato, o universo da canção é muito mais amplo. Como mostrou Tatit, a canção é o lugar de encontro da forma melódica com a força entoativa. Esta última, estreitamente vinculada à situação da enunciação, rebate os princípios de estruturação e organização que a forma melódica tenta lhe impor. A espontaneidade da fala é o elemento primitivo e essencial da canção popular, e está na contramão da forma musical. A canção popular parece ser, assim, muito mais a arena de luta entre forças opostas que o resultado natural de uma compatibilidade entre letra e melodia.
Dado que o objeto das nossa investigações é a natureza e os princípios que regem a hierarquia melódica, focamos nosso trabalho na forma melódica, e todos as canções analisadas, bem como os processos fonológicos descritos, são exemplos do poder da estruturação da melodia sobre o livre curso da fala natural e espontânea. Mas precisamos nos deter, ainda que brevemente, sobre alguns exemplos de desconstrução das estruturas melódicas que decorrem da figurativização, até mesmo para tentar avaliar o poder descritivo da hierarquia melódica em canções que não se adequam ao modelo canônico do enunciado melódico elementar. Mais que isso, acreditamos que a grade estrutural pode revelar aspectos importantes sobre o comportamento rítmico de melodias figurativizadas.
Tatit mostrou que a fala está presente na melodia da canção popular por meio de um princípio de deitização, pelo qual certas inflexões entoativas são introduzidas em pontos chave dos segmentos melódicos. É certo que não podemos avançar muito nesse terreno, uma vez que a grade estrutural não fornece informação alguma sobre estas inflexões. Em contrapartida, ela pode nos dar pistas importantes sobre o comportamento rítmico das melodias figurativizadas.
Vejamos o caso de Conversa de botequim. Embora não apresente a regularidade de uma melodia temática como, digamos, A banda ou Cajuína, apenas para retomar canções já mencionadas aqui, Conversa de botequim exibe sim uma estrutura desviante, mas preserva elementos elementos estruturais importantes. As balizas harmônicas do enunciado elementar estão presentes aqui assim como a associação nota-sílaba. De fato, este parece ser o comportamento rítmico predominante das melodias figurativas, o que mostra que, mesmo nesses casos, a hierarquia melódica é uma ferramenta útil de análise.

<048.01-04>
Sílaba          seu gar ÇOM fa ço fa VOR de me tra ZER de pre ssa
                U ma bo a ME dia que não SE ja re quen
ta dum pão bem QUEN te com man TEI ga be um
guar da NA po ewm co po DA gua bem ge LA da
| | | | | | | | | | | | | | | |
Nota N N N N N N N N N N N N N Pulso P P P P
Cel C C
Enunc E

Vejamos agora alguns casos extremos. A dicotomia entre forma musical e a força entoativa que advém da fala cotidiana está cristalinamente estampada em duas das mais consagradas canções de Raul Seixas, Gita e Ouro de tolo. Na primeira o componente linguístico mostra-se subjugado à forma musical, que exibe quase que didaticamente os elementos estruturais sobre os quais temos trabalhado até aqui.

<047.03-06>
Sílaba às VE zes vo cê me per GUN ta
por KJE kjeu sou tão ca LA do
não FA lo dja mor qua se NA da
nem fi co so rrin dwaw teu LA do
etc…
| | | | | | | | | * * * *
Nota N N N N N N N N N
Pulso P P P P
Cel C C
Enunc E

Já Ouro de tolo mostra a outra face da moeda. Aqui a presença da fala é a tal ponto dominante que torna tão difícil quanto desnecessária qualquer representação da melodia. Vale a pena observar, porém, que apesar de hiperfigurativizada, Ouro de tolo apresenta ao menos dois dos traços da forma melódica: o alinhamento nota-sílaba e os dois acordes que servem de núcleo à células do enunciado. Aliás, é exatamente esta última propriedade que cria o efeito de sentido de que a canção é feita de frases melódicas, apenas que excessivamente longas e saturadas de sílabas. Assim:

<072>
Sílaba Eu de VI……………………….por MÊS
Eu de VI……………………….se TEN e três
Eu de VI………………….ma RA vi LHO sa
Eu de VI……………………..pe ri GO sa
etc…
| | | | | | | | | | | | | | | | | | | | | | | |
Nota N N N …………………………. N N N N N
Cel C C
Enunc E

Encontramos um contraste semelhante quando comparamos duas canções de Caetano Veloso, Lua de São Jorge, dominada pela forma melódica, e O estrangeiro, dominada pelo princípio de figurativização.

<073.01-04>
Sílaba LU a de SÃO jor ge
LU a des LUM bran te
A zul ver VE jan te
CAU da de PA vão
| | * | | * * | * * | * *
Nota N N N N Pulso P P P
Cel C C
Enunc E

Note-se que em O estrangeiro, assim como ocorre em Ouro de tolo, a saturação silábica não impede a canção de apresentar as balizas que determinam o enunciado melódico e o alinhamento nota-sílaba.

<074.01>
Sílaba OpintorpowgoGÃ………………………guanaBAra
EunãosoNHEI………………………….DIselsob
| | | | | | | | | | | | | | | | | | | | | | | | | |
Nota N N N N N N……………………………N N N
Cel C C
Enunc E

Esta maneira de suspender a direcionalidade harmônica do enunciado melódico não é privilégio das canções figurativas cuja rítmica silábica é independente do pulso, como o são Ouro de tolo e O estrangeiro. Dorival Caymmi, em O mar, serve-se deste mesmo recurso suspensivo trabalhando sobre uma figura rítmica exaustivamente reiterada. Isso mostra que, até de maneira surpreendente, o enunciado melódico é também elástico, assim como a entoação linguística. O que de fato conta parece ser a presença das balizas harmônicas, os núcleos das células, que estabelecem a predicação melódico-harmônica e criam o efeito de sentido de que algo esta sendo enunciado musicalmente.

<075.09-12 e 13-18>
Sílaba PE dro vi vi a …………………raj A(25 sil)
TO dos gos ta vam…………………raj A(42 sil)
| | * | | | | |
Nota N N N N N ……………………N N
Pulso P P P………..P
Cel C C
Enunc E
As características compartilhadas por Ouro de Tolo e O estrangeiro levam-nos a pensar que a forma melódica tem um status superior à força entoativa, no sentido de que qualquer canção tem que preservar os elementos estruturais mínimos da melodia para ser caracterizada como tal, sob o risco de diluir-se no curso da fala pura, perdendo como isso sua eficácia.

  • Figurativização

 

Já vimos que, segundo Tatit, a canção é o lugar de encontro da forma melódica com a força entoativa. A situação de enunciação a qual esta última se vincula repele os princípios que regem a forma melódica em favor da presentificação da fala no corpo do sujeito da enunciação. Desse modo, “o núcleo entoativo da voz engata a canção na enunciação produzindo efeito de tempo presente: alguém cantando é sempre alguém dizendo, e dizer é sempre aqui e agora”. Tatit denomina figurativização ao procedimento de incorporar à canção traços da fala.

A figurativização representa a verdadeira antítese da forma melódica (que Tatit denomina tematização/passionalização) e, exatamente por isso, deveria ser perfeitamente reconhecível através de uma grade estrutural despida de recorrências rítmicas. Isto se dá exatamente porque a fala obedece ao livre fluxo das ideias, ou seja, a fala consiste num plano da expressão organizado pelo plano do conteúdo. Quando falamos não contamos o numero de sílabas e nem escolhemos conscientemente a distribuição dos acentos. Por isso, quando comparado à música, o fluxo da fala é caótico. Se a melodia temática revela-se na grade estrutural pelas recorrências, a melodia figurativa, ao contrário, tenderá a diluir os contrastes entre os motivos rítmicos. É o que ocorre em Conversa de Botequim.

 

A grade estrutural mostra que a melodia está longe de apresentar a isotopia rítmica de uma melodia temática, embora as balizas harmônicas do enunciado elementar estejam presentes, assim como a associação nota-sílaba. De fato, o que há em comum na grade de uma melodia temática como Cajuína e de uma melodia figurativa como Conversa de Botequim, é a presença das duas células do enunciado elementar; o que distingue as respectivas grades, por outro lado, é a ausência de um padrão rítmico na segunda, ausência esta também revelada pela grade. Quanto mais figurativa a melodia, mais irregular é a distribuição das notas, o que resulta na saturação dos valores (|). A melodia temática, ao contrário, tende a manter uma distribuição regular de pausas (*) e valores na célula. Isso mostra o quanto a grade estrutural pode nos ajudar na identificação de melodias figurativas. 

Samba do Arnesto é outro exemplo didático desta saturação. À medida que a melodia se desenvolve, as posições na grade vão sendo progressivamente ocupadas pelas notas. Compare-se a distribuição de valores no primeiro enunciado da canção (a) e na totalidade destes (b): 

 

<0032.01>

                 *   *   *   *   |   *   |   *   |   *   |   *   |   *   |   |   

Nota                             N      <N       N       N       N       N   N   

 

<0032.01-07>

                 |   |   |   |   |   *   |   *   |   *   |   |   |   |   |   |   

Nota             N   N   N   N   N      <N       N       N   N   N   N   N   N   

 

O fato de que uma melodia figurativa possa ser projetada na grade estrutural não deveria ser surpreendente. Se, de fato, estas melodias têm sua origem nas entoações linguísticas, como quer Tatit, tais entoações têm que se submeter aos imperativos do encadeamento harmônico nos pontos chave, ou seja, nos núcleos das células. É exatamente isso o que a grade estrutural revela. Existem certos pontos de apoio rítmico e harmônico que precisam ser preservados, caso contrário a melodia corre o risco de transfigurar-se em entoação pura.  A rigor, são os princípios do tonalismo que estão por trás do enunciado elementar. De fato, cada enunciado elementar é apenas um segmento de uma totalidade maior, cuja relação estrutural fundamental é o movimento tônica-dominante-tônica. A grade de Conversa de Botequim mostra a importância fundamental dos pontos de inflexão melódica apoiados sobre os pulsos e os núcleos das células. Eles formam uma espécie de estrutura profunda da melodia, como se pode ver na melodia abaixo, da qual extraímos todos os contornos, com exceção daqueles que marcam os núcleos das duas células.