condições

Condições de boa formação

A hipótese de trabalho de que a palavra cantada seja uma variante da palavra falada é sugerida pela observação de um grande número de canções nas quais certas relações entre texto e melodia mostram-se constantes. Tais relações podem ser interpretadas como condições de boa formação da palavra cantada, ou seja, como princípios e regras de caráter muito geral que governam as associações entre unidades da cadeia segmental e unidades melódicas. O mais fundamental desses princípios determina o alinhamento entre as notas (os elementos terminais da melodia) e as sílabas (os elementos terminais do texto). As condições de boa-formação dividem-se em princípios, que são invioláveis, e regras, que espelham tendências da construção da palavra cantada, mas que são violáveis.

PRINCÍPIOS

1. Princípio de alinhamento dos terminais: cada terminal da cadeia melódica (nota) deve ser alinhado a um e apenas um terminal da cadeia silábica (sílaba) e vice-versa.

Por trás de um princípio aparentemente trivial, esconde-se talvez a mais importante diferença entre entoação e melodia e, por extensão, entre fala e canto. Na entoação da fala, constituída de tons, (i) uma sílaba pode ser associada a mais de um tom e (ii) um tom pode ser associado a mais de uma sílaba. Na melodia cantada, ao contrário, a relação entre nota e sílaba é biunívoca, ou seja, é uma relação de um para um. Esquematicamente:

canto                    fala             fala             fala
  σ                       σ                σ               σ   σ
  |                      / \               |                \ /
  n                     t   t              t                 t

A gramática entoacional organiza-se em torno de apenas dois tons1, alto (H) e baixo (L), cuja combinatória da origem a um número limitado de acentos tonais e de tons de fronteira2. Em razão dessa limitação – essencial para o bom funcionamento da entoação enquanto sistema paralinguístico – a relação entre tom e sílaba pode ser de um para um, de um para muitos, ou de muitos para um. Segundo os princípios formulados por Goldsmith3, (i) todas as vogais estão associadas a ao menos um tom e (ii) todos os tons estão associados a ao menos uma vogal. A associação entre um único tom e uma única vogal é apenas um caso particular decorrente de (i) e (ii).

Assim, pode-se entender a entoação como uma cadeia definida de tons associada a uma cadeia indefinida de sílabas. Ou seja, a entoação tem uma natureza “elástica”, e essa elasticidade faz dela uma espécie de melodia moldável a qualquer cadeia linguística. Daí a relação entre tom e sílaba poder ser de um para muitos, de muitos para um, ou de um para um.

Suponha-se, por exemplo, uma interlocução na qual é apresentada a seguinte informação:

  • “O João vai a São Paulo amanhã só pra comprar uma camiseta do Neymar!”

O interlocutor, surpreso, pode manifestar sua reação por meio de diversas frases, por exemplo:

  • “O João?!”
  • “O João vai a São Paulo amanhã?!”
  • “O João vai a São Paulo amanhã só pra comprar uma camiseta do Neymar?!”, etc.

Embora cada uma destas frases contenha um número diferente de sílabas, todas têm a mesma entoação. Além disso, não são apenas as três frases mencionadas que portam a mesma entoação, mas um número indefinido delas, uma vez que a entoação associada ao conteúdo “surpresa” pode recobrir um sem número de manifestações linguísticas. Empregamos as mesmas entoações recorrentemente toda vez que expressamos os mesmos sentidos. Na qualidade de morfemas entoacionais, portanto, as entoações constituem uma classe fechada. As entoações constituem inventários relativamente estáveis da língua e esta é a razão pela qual não criamos a cada ato da fala novas entoações, mas, graças a sua elasticidade, apenas as adaptamos a novas cadeias de sílabas. Em suma, a entoação não é produtiva. Outra característica importante da entoação é o fato de ela não ser recursiva. Como diz Pierrehumbert, a entoação é uma gramática de estados finitos, de modo que os morfemas entoacionais apenas se sucedem linearmente uns aos outros sem constituir hierarquias, moldando-se ao conteúdo semântico, à estrutura sintática e à condição pragmática da enunciação. Diferentemente da entoação, a melodia é uma classe aberta e apresenta uma estrutura complexa, hierárquica e parcialmente recursiva. As notas de uma melodia são estruturadas em grupos hierarquicamente organizados segundo parâmetros rítmicos e harmônicos. Por essa razão, a produtividade da palavra cantada é em princípio ilimitada. Sempre poderemos criar novas melodias e a elas associar cadeias linguísticas, desde que respeitada a gramática da palavra cantada.

Ao estabelecer a relação biunívoca entre nota e sílaba, o Princípio de Alinhamento dos Terminais, demarca muito precisamente os limites entre palavra cantada e palavra falada e as condições de boa formação desta última. Assim, (1) é uma cadeia bem formada ao passo que (2) e (3) são cadeias são mal formadas.

        (1)nn = σn                                     
         σ σ σ...σ                 
         | | |...|        
         n n n...n 

        (2)nn > σn
         σ  σ  σ
         | / \ |
         n n n n 

        (3)nn < σn
         σ σ σ σ
         | \ / |
         n  n  n

Desse princípio fundamental derivam diversas regras de reestruturação silábica e melódica. Embora não se possa demonstrar que o princípio de alinhamento seja inviolável, pode-se elaborar um procedimento para verificá-lo, que consiste em comparar diferentes versos de uma mesma melodia. Se o número de sílabas do verso é diferente do número de notas de uma melodia (nn ≠ σn), uma das duas cadeias deve ser reestruturada de modo a igualar o número de terminais (nn = σn). São quatro as possibilidades de reestruturação:

  1. reestruturação por incremento silábico
    1. regra da epêntese silábica
    2. regra da diérese
  2. reestruturação por redução silábica;
    1. regra da ditongação
    2. regra da degeminação
    3. regra da elisão
  3. reestruturação por incremento melódico;
    1. regra da rima feminina
  4. reestruturação por redução melódica.
    1. regra da rima masculina

A reestruturação silábica parece ser o processo mais comum (ou mais facilmente verificável), e manifesta-se no que, à primeira vista, parecem ser processos fonológicos como a epêntese, a degeminação, a elisão, a ditongação e a diérese.

1.1.1 Regra da epêntese silábica:  ∅ → σ / σn < nn

Se σn < nn,  uma ou mais sílabas são inseridas até que σn = nn.

Uma sílaba assim inserida é chamada de sílaba epentética. Por exemplo, em Asa Branca, no verso “Eu perguntei a Deus do céu ai”, “ei” é uma sílaba epentética, o que pode ser observado pela simples comparação com os outros cinco versos associados à mesma melodia:

<031.03;07;11;15;19>
Sílaba     σ   σ   σ   σ   σ   σ   σ   σ   σ   σ    
<031.03>  Eu  per gun te   EI  a Deus do  céu  ai 
<031.07>  Por fal ta  d'á gua per di  meu  ga  do 
<031.11>  En  ton ceu di  sse  a deus Ro   si  nha 
<031.15>  Es  pe rwa chu   va ca  ir  de   no  vo 
<031.19>  Eu  tjasse  gu   ro não cho re  não viu
           |   |   |   |   |   |   |   |   |   |
Nota       N   N   N   N   N   N   N   N   N   N

1.1.2 Regra da diérese:  σ → ∅ /  σn < nn

Se σn < nn,  um ou mais ditongos são desfeitos até que σn = nn.

Diferentemente da epêntese silábica, na qual uma sílaba qualquer é inserida num slot da cadeia linguística, na diérese um ditongo é desfeito de modo a igualar o número de sílabas do verso ao número de notas da melodia. Trata-se de um fenômeno similar ao encontrado na metrificação poética. Por exemplo, o 15º verso de Tempo de estio:

<002.15>
Sílaba   σ   σ   σ   σ   σ   σ   σ   σ   σ   σ   σ   σ   σ   σ    
         O  Rio  es tá chei  o  de  So  lan ges  e  Le   I  las
         |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |
Nota     N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N

1.2.1 Regra da ditongação:  σ → ∅ /  σn > nn

Se σn > nn,  um ou mais hiatos são ditongadas até que σn = nn.

<029.06-07>
Sílaba   σ   σ   σ   σ   σ   σ   σ   σ   σ          σ   σ   σ   σ   σ   σ 
        co  mo  de  um  fil me   a   a  ção        co  mo  djum filmja ção
         |   |   \ /     |   |    \  |  /    >>     |   |   |   |   |   |
Nota     N   N    N      N   N       N              N   N   N   N   N   N

Se nn < σn,  uma sílaba é inserida para satisfazer o Princípio do Alinhamento dos Terminais. Esta sílaba é chamada de sílaba epentética.

1.3.

1.3 Regra da epêntese melódica:  ∅ → n / nn < σn

Se nn < σn,  uma sílaba é inserida para satisfazer o Princípio do Alinhamento dos Terminais. Esta sílaba é chamada de sílaba epentética.

1.1 Regra de apagamento silábico:  σ → ∅ / nn < σn
(2.2) Regra de apagamento de σ:  σ  → ∅ / nn < σn

(3) violação do princípio de alinhamento dos terminais: nn > σn

(2.1) Regra de inserção de σ:  ∅ → σ / nn > σn
(2.2) Regra de apagamento de n:  n  → ∅ / nn > σn

1 Não nos referimos aqui aos tons (línguas tonais), mas apenas à entoação.

2 Pierrehumbert, J. The phonology and phonetics of English intonation.

3 Goldsmith, J. Autosegmental Phonology.

2. Princípio de anaforização

nbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbb

ccccc

nbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbb

dddd

ggggggggggggggggggg