(C) — (PhP)

Célula harmônica(C) — Frase fonológica (PhP)

A relação pulso-acento, fundada em critérios exclusivamente rítmicos, explica apenas parcialmente a distribuição de proeminências na canção. Por exemplo, no primeiro verso de Cajuina, as sílabas MOS e TI claramente se destacam das demais.

Cajuína (Caetano Veloso)

#001.01
Sílaba        e  XIS tir MOS  a  QUE se  RA  que SE  des TI          na
              |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   *   *   |
Nota          N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N           N
Pulso             P       P       P       P       P       P       P

 

O deslocamento de acento na palavra existirmos e.xis.TIR.mos => e.xis.tir.MOS ocorre porque a sílaba MOS se associa a um pulso, e este atrai o acento. A questão reside em saber por que o acento desloca-se para a direita MOS e não para a esquerda XIS, se ambas as sílabas estão igualmente associadas ao pulso. Em princípio, não há direcionalidade no deslocamento acentual, de modo que XIS e MOS deveriam ser igualmente acentuadas. A resposta é que a sílaba MOS (assim como TI) destaca-se das outras doze sílabas do verso porque está associada ao núcleo de uma célula harmônica. Para tornar claro o uso que se fará deste conceito é necessária uma breve recensão da literatura sobre o que os musicólogos chamam de phrase structure analysis.

Phrase Structure Analysis

Uma melodia não é uma cadeia estocástica de notas. Estas agrupam-se em pequenas unidades recorrentes que recebem diferentes denominações: grupo, motivo, inciso ou ainda célula, termo adotado aqui. Tais unidades recorrentes não apenas segmentam o fio melódico. Elas estruturam a melodia tornando-a algo compreensível. Como diz Schoenberg, “…só se pode compreender aquilo que se pode reter na mente, e as limitações da mente humana nos impedem de memorizar algo que seja muito extenso. Desse modo, a subdivisão apropriada facilita a compreensão e determina a forma”.(1996:27-28).

A célula é uma unidade, seja do ponto de vista analítico, seja do ponto de vista sintético, que resulta de uma relação de dependência. Do ponto de vista analítico, a célula é uma unidade, uma incisão no contínuo sonoro, o lugar de uma divisão no devir melódico:

“Entende-se por inciso (do latim incisus) [leia-se célula] toda incisão, todo corte praticado na continuidade sonora. De modo que, a rigor, é o silêncio que determina o inciso. Sem dúvida, pode-se admitir por extensão de sentido que o inciso não se refere tanto ao silêncio quanto ao fragmento musical isolado na análise rítmica, esteja ou não este fragmento separado por silêncios do que o rodeia. Tal é o conceito mais difundido desde o século passado, e o que se seguirá nessa obra. Portanto, o inciso pode ter uma, duas ou mais notas; sua única determinação é o fato de estar isolado do entorno.”(Quirós, :77).

Uma célula constrói-se como unidade ao demarcar um entorno. Tal demarcação é mais evidente quando contrasta som e silêncio. No entanto, as células podem também ser ligadas umas às outras sem solução de continuidade – notadamente em melodias instrumentais para cordas e teclado, por exemplo. Neste caso, a demarcação e os limites desaparecem. Se ainda assim pode-se falar em célula é porque esta é também uma unidade do ponto de vista sintético: a célula é o lugar do encontro de contrastes, como prótase/apódose, impulso/repouso, tensão/distensão etc.

“O inciso [leia-se a célula] traz, pois, em si, a causa intrínseca, vital de sua unidade. Entre a Arsis inicial do inciso e a sua Thesis final, desenvolve-se uma corrente intensiva, com sua PRÓTASE, seu pólo e a sua APÓDOSE. É do pólo, como dum foco central, que partem e se repartem por todo inciso as nuanças expressivas de conjunto e de detalhe.”(Porto,:44).

Considerando-se a totalidade da melodia (ponto de vista analítico), a célula é uma unidade de segmentação. Se, ao contrário, parte-se das grandezas musicais elementares, as notas (ponto de vista sintético), a célula é o lugar onde se realizam os contrastes tensivos entre os pólos das categorias melódicas, intensidade (forte x fraco), altura (grave x agudo) e duração (longo x breve). É preciso lembrar que tensão ou repouso são efeitos de sentido criados por uma configuração sintagmática das grandezas musicais primitivas no interior da célula. A célula sintetiza tendências contrastantes e cria o efeito de uma transformação tensão—distensão, impulso—repouso. Esse “ciclo” faz da célula uma unidade do organismo musical.

“…assim como a menor ‘unidade’ anatômica e funcional de todo organismo é a célula, a menor ‘unidade’ sonora e qualitativa de toda música é o ritmo elementar. Coloquei unidade entre aspas para ressaltar que ela se refere ao menor organismo complexo possível, e não a uma unidade real, numérica. Não é de estranhar, portanto, que se tenha denominado o ritmo elementar de célula rítmica”.(Quirós, :75).

O termo célula será empregado aqui com um sentido mais restrito. Para isso consideraremos a célula sob três pontos de vista: sua estrutura interna, o princípio de iteração que estabelece sua recorrência e sua função harmônica. Quanto à estrutura interna, as células são cadeias de notas das quais uma única se destaca por:

    • (i) ter maior duração relativa;

 

    (ii) ter maior intensidade relativa;

Convém frisar que a opção de denominar um grupo de notas assim formado de célula – e não inciso, grupo rítmico ou motivo, igualmente possíveis – não reflete nenhuma inclinação teórica, mas um fato de ordem prática na análise da canção popular, caracterizada pela superposição entre unidades linguísticas e unidades melódicas. É conveniente poder associar uma cadeia de sílabas dotada de um único acento (uma sílaba proeminente) com uma cadeia de notas dotada de uma única proeminência. O conceito de célula é o que mais propriamente se adapta a este propósito. Assim, uma célula será um grupo de notas, das quais uma única se destaca por ter maior duração e maior intensidade relativas, seu núcleo.

O segundo aspecto a ser tratado diz respeito à reiteração da célula no curso do desenvolvimento melódico. Embora o termo já seja uma metáfora proveniente da biologia, poderíamos ir mais longe e dizer que as células se “multiplicam” ao longo da melodia. Se a chamada música de concerto baseia-se no desenvolvimento de motivos, a música popular baseia-se muito mais na sua repetição.

Mas o mais importante aspecto de uma célula é o fato de seu núcleo estar associado a uma função harmônica. Na melodia da canção popular, a célula melódica é uma unidade a um tempo harmônica (há apenas um acorde para cada célula), rítmica (o núcleo da célula coincide com a cabeça de um compasso musical) e melódica (muitas vezes a célula tem um perfil melódico que se repete ao longo da melodia). Por essa razão, a nota-sílaba associada ao núcleo da célula é proeminente em relação às demais.

Assim como a melodia é ritmicamente demarcada pelos pulsos – os quais percebemos intuitiva e naturalmente quando batemos os pés ou as mãos acompanhando uma melodia –, ela é também harmonicamente demarcada pelos núcleos das células, que são percebidos como os lugares onde, entre outras coisas, o violonista troca de acordes e o contrabaixista toca a nota mais longa da linha do baixo. Na verdade, este é um componente fundamental da aquisição da linguagem musical. Uma das competências básicas do músico, mesmo o iniciante e amador, consiste em reconhecer as unidades que compõem a cadeia melódica. É exatamente esta competência, muito mais dependente da exposição ao estímulo musical que de um treinamento escolar sistematizado, que tradicionalmente chamamos “tocar de ouvido”.

Nem todo acorde é núcleo de uma célula harmônica. Uma melodia pode ser mais ou menos ornamentada harmonicamente. Daí que o núcleo de uma célula harmônica deva necessariamente coincidir com a cabeça de um compasso musical, associando-se à nota/sílaba com a maior intensidade e duração relativas dentro da cadeia.

Assim, no verso de Cajuína, as duas células contém os acordes de Dó menor e Fá menor. Tais acordes instauram uma direcionalidade harmônica mínima, condição essencial para a constituição do enunciado melódico elementar.

Cajuína (Caetano Veloso)

#001.01
Sílaba        e  XIS tir MOS  a  QUE se  RA  que SE  des TI          na
              |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   *   *   |
Nota          N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N           N
Pulso             P       P       P       P       P       P       P
Cel                       C                               C

 

Há uma questão teórica interessante sobre o status da célula enquanto constituinte da hierarquia melódica. Se assumimos que a célula é um constituinte melódico – assim como falamos que a palavra e a frase fonológica são constituintes prosódicos –, então devemos explicitar como tal constituinte se forma e quais são seus limites. No entanto, tudo indica que os limites da célula somente podem ser estabelecidos em condições muito particulares. No exemplo de Cajuína é possível afirmar a existência dos núcleos de duas células – porque sabemos quais são os acentos harmônicos – mas não se pode dizer onde termina a primeira delas, onde principia a segunda, e mesmo se estes limites coincidem ou não. Tudo leva a crer que a análise de melodias não precisa se referir aos limites dos constituintes, mas apenas ao alinhamento entre seus núcleos. Consequentemente, abrimos mão de uma representação arbórea para a melodia (como a da hierarquia prosódica) e adotamos uma representação em grade.

Dado que a célula melódica é um conjunto de notas das quais uma única destaca-se das demais por receber o acento harmônico, ela teria como contraparte linguística a palavra prosódica, o grupo clítico ou a frase fonológica, que são cadeias de sílabas dotadas de uma única proeminência. De fato, a célula é uma espécie de locução melódica, ou seja, uma unidade musical que encontra seus limites na capacidade articulatória do gesto musical, seja este gesto vocal ou instrumental. Daí a tendência da célula melódica a associar-se àqueles constituintes prosódicos. A seguir apresentamos alguns exemplos de células associadas a:

(i) palavras prosódicas, [ci.DA.de], [a.ba.ca.TEI.ro];

Cidade Maravilhosa (André Filho)

#016.01
Sílaba       ci  DA  de
              |   |   | 
Nota          N   N   N
Pulso         P   P   P
Cel               C

Refazenda (Gilberto Gil)

#006.01
Sílaba        a  ba  ca  TEI ro
              |   |   |   |   |
Nota          N   N   N   N   N
Pulso                     P
Cel                       C

(ii) grupos clíticos [meu.co.ra.ÇÃO], [dojs.ir.MÃOS];

Carinhoso (Pixinguinha & João de Barro)

#009.01
Sílaba       MEU co  ra  ÇÃO
              |   |   |   | 
Nota          N   N   N   N
Pulso         P           P
Cel                       C

Morro dois irmãos (Chico Buarque)

#004.01
Sílaba      dois ir  MÃOS
              |   |   |
Nota          N   N   N
Pulso                 P
Cel                   C

(iii) frases fonológicas [quan.doj.Ej], [te.nho.pen.SA.do]

Asa branca (Luiz Gonzaga & Humberto Teixeira)

#031.01
Sílaba      quan doj  Ej
              |   |   |
Nota          N   N   N
Pulso         P       P
Cel                   C

Gabriela (Tom Jobim)

#014.01
Sílaba       te  nho pen SA      do
              |   |   |   |   *   |
Nota          N   N   N   N       N
Pulso         P           P
Cel                       C

A relação pulso-acento é de ordem exclusivamente rítmica. Trata-se de uma relação entre a expressão musical (o pulso) e a expressão verbal (o acento primário ou secundário). A relação da célula com o texto, por outro lado, parece envolver informação de ordem morfológica (portanto, plano do conteúdo). Os núcleos das células atraem os núcleos das palavras lexicais, ou seja, nomes, verbos, adjetivos e advérbios. No primeiro verso de Cajuína as três palavras lexicais (existir, ser, destinar) formam três frases fonológicas:

Cajuína (Caetano Veloso)

#001.01
FrasFon      [           PhP][          PhP][            PhP           ] 
Sílaba        e  XIS tir MOS  a  QUE se  RA  que SE  des TI          na
              |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   *   *   |
Nota          N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N           N
Pulso             P       P       P       P       P       P       P
Cel                       C                               C

 

Assim, a regra básica para a construção da célula melódica diz que seu núcleo deve ser preferencialmente associado ao núcleo de uma palavra lexical. Como temos duas células e três núcleos lexicais, um destes é descartado. O mesmo ocorre no décimo verso de Anunciação, onde temos três palavras lexicais (anunciar, sino, catedral).

Anunciação (Alceu Valença)

#010.10
FrasFon      [           PhP  ] [        PhP][           PhP ]
Sílaba        eu TjA nun CI   o  NOS si  NOS das CA  te DRAIS
              |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |
Nota          N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N
Pulso             P       P       P       P       P       P
Cel                       C                               C

Ao contrário do princípio de alinhamento, o princípio de associação não é inviolável. Eventualmente uma palavra não lexical pode estar associada à célula, como, por exemplo, em Morro dois irmãos, onde uma conjunção se associa à primeira célula.

Morro dois irmãos (Chico Buarque)

#004.01
Sílaba                    E                                  des con fi   AR do teu  si  LÊN             CIO
                          |   *   *   *   *   *   *   *   *   |   |   |   |   |   |   |   |   *   *   *   |  
Nota                      N                                   N   N   N   N   N   N   N   N               N
Pulso                     P               P               P               P               P               P
Célula                    C                                                               C