(E) – (IP)

Enunciado melódico(E) — Frase entoacional (PhP)

Um enunciado melódico elementar é constituído por duas células contíguas. A análise de melodias de canções populares mostra que o encadeamento de duas células melódicas cria uma espécie de predicação melódico-harmônica, responsável pelo efeito de sentido de frase musical.

Uma breve digressão é necessária para minimizar a estranheza da expressão “predicação melódico-harmônica”. Em seu sentido mais amplo, a predicação consiste na atribuição de uma dada propriedade a uma entidade. Entidades indeterminadas como, por exemplo, “João”, tornam-se determinadas pela predicação, como em “O João é flamenguista roxo” ou “O João está doente”, por exemplo. Ser flamenguista ou estar doente são determinações de João. A predicação está na base do desenvolvimento discursivo porque é a partir dela que se estabelecem os temas do discurso. Assim, “O João é flamenguista roxo mas nunca foi ao Maracanã” e “O João está doente mas não quer ir ao hospital” são ambos desenvolvimentos discursivos prováveis, uma vez que estabelecem temas (ou seja, o tema do futebol e o tema da saúde, respectivamente). Por outro lado, “O João é flamenguista roxo mas não quer ir ao hospital” não tem o mesmo grau de probabilidade, muito menos “O João está doente mas nunca foi ao Maracanã”, embora sejam ambos possíveis.

Assumimos a hipótese de que existe uma predicação musical e que tal predicação decorre da concatenação entre pelo menos duas células harmônicas, cujos núcleos são preenchidos por funções harmônicas distintas manifestadas por diferentes acordes, daí o termo “predicação melódico-harmônica”. Um único acorde isolado é uma entidade musical tão indeterminada quanto um termo isolado da oração. Assim como este, o acorde é indeterminado no sentido de que diferentes percursos harmônicos podem ser desencadeados a partir dele. Na melodia tonal – que serve de base à canção popular – tais percursos não são estabelecidos pelos acordes em si mesmos (dó maior, sol maior, etc.), mas pelas funções harmônicas a eles associadas (tônica, dominante, etc.). Na medida que tais funções harmônicas encabeçam os núcleos de duas células contíguas, estabelece-se uma predicação musical elementar, ou seja, instaura-se um percurso mínimo, uma direcionalidade no fluxo da melodia.

Na música, assim como na língua, os termos são isolados apenas pela análise. O que existe de fato são cadeias de termos que têm sentido enquanto totalidade. O sentido está na totalidade, não em suas partes. Isso é mais fácil de compreender na linguagem verbal porque as palavras têm um valor referencial que pode ser permutado em função do contexto. O termo “mesa” tem um sentido em “a mesa redonda foi excelente” e outro sentido em “a mesa de madeira está quebrada”. Ou seja, o sentido de “mesa” é relativamente aberto e apenas se concretiza em cada predicação particular. De fato, existem tantos sentidos para “mesa” quantas são suas possibilidades combinatórias.

Pode-se afirmar o mesmo da música em geral e da harmonia em particular: existem tantos acordes de Dó maior, quantas são suas possibilidades combinatórias na cadeia tonal. Por isso, um mesmo acorde tem dois “sentidos” diferentes em (a) e (b), e pode-se dizer, por analogia, que tem-se aqui duas predicações harmônicas distintas:

(a)
Cidade Maravilhosa (André Filho)

#016.01
FrasEnt       [                                     IP       ] 
FrasFon       [    PhP       ]        [            PhP       ]
Sílaba         ci  DA      DE          ma  RA  vi  LHO     SA  
                |   |   *   |   *   *   |   |   |   |   *   |   *   * 
Nota            N   N       N           N   N   N   N       N         
Pulso               P       P       P       P       P       P       P       P   
Célula              C                               C
                  (DÓMa)                         (SOLMa)                   

(b)
Você vai me seguir (Chico Buarque)

#022.01 
FrasEnt       [                                      IP] 
FrasFon       [    PhP]           [PhP][            PhP] 
Sílaba         vo  CE              VAI  me   se    GUIR 
                |   |    *    *     |    |    |     |    *    *    * 
Nota            N   N               N    N    N     N         
Pulso               P               P               P              P        
Célula              C                               C
                  (DÓMa)                          (FAMa)                 

Tal relação predicativa entre dois acordes está na base de enunciados musicais elementares, como por exemplo em:

Anunciação (Alceu Valença)

#010.01
FrasEnt      [                                            IP   ]
FrasFon      [           PhP  ] [        PhP][   PhP   ][PhP   ]
Sílaba        na BRU ma  LE  ve  DAS paiXÕES que VÊM de  DEN tro
              |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |
Nota          N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N
Pulso             P       P       P       P       P       P
Cel                       C                               C
Enunc                                                     E

Casinha feliz (Gilberto Gil)

#007.01
FrasEnt        [                         IP]
FrasFon        [PhP   ][    PhP  ][     PhP] 
Sílaba          ON  de  re  SIS teo ser TÃO
                 |   |   |   |   |   |   |
Nota             N   N   N   N   N   N   N
Pulso            P           P           P
Cel              C                       C
Enunc                                    E

Gabriela (Tom Jobim)

#014.01
FrasEnt        [                                     IP       ]
FrasFon        [PhP   ][    PhP       ][PhP   ][    PhP       ] 
Sílaba          TE  nho pen SA      do  MUI to  na  VI      da
                 |   |   |   |   *   |   |   |   |   |   *   |
Nota             N   N   N   N       N   N   N   N   N       N
Pulso            P           P           P           P
Cel                          C                       C
Enunc                                                E

Felicidade (Lupicínio Rodrigues)

#025.01
FrasEnt         [                                                IP   ]
FrasFon         [               PhP          ] [PhP          ][ PhP   ] 
Sílaba              fe  LI  ci  DA          de  FOI         sem BO  ra 
                 *   |   |   |   |   *   *   |   |   *   *   |   |   |
Nota                 N   N   N   N           N   N           N   N   N
Pulso            P       P       P       P       P       P       P
Cel                              C                               C
Enunc                                                            E

Gita (Raul Seixas & Paulo Coelho)

#047.03
FrasEnt        [                             IP   ]
FrasFon        [    PhP   ][    PhP][       PhP   ]
Sílaba           às VE  zes vo  cê  me  per GUN ta
                 |   |   |   |   |   |   |   |   |
Nota             N   N   N   N   N   N   N   N   N
Pulso                P           P           P 
Cel                  C                       C
Enunc                                        E

Travessia (Milton Nascimento & Fernando Brandt)

#057.01
FrasEnt       [                                          IP       ]
FrasFon       [         PhP           ]        [PhP][   PhP       ] 
Sílaba         quan do  VO          cê          foi  em BO      ra 
                 |   |   |   *   *   |   *   *   |   |   |   *   |
Nota             N   N   N           N           N   N   N       N
Pulso                    P               P               P       
Cel                      C                               C
Enunc                                                    E

O núcleo de um enunciado melódico coincide com a célula mais à direita e usualmente é seguido de pausa. Muitas vezes, o núcleo atrai a sílaba mais proeminente de uma frase entoacional. Nesses casos (como nos exemplos acima), o limite do enunciado melódico é determinado pelo alinhamento célula-pulso-nota, o qual por sua vez coincide com a sílaba mais proeminente do verso, pois é simultaneamente o núcleo da palavra prosódica, frase fonológica (PhP) e frase entoacional (IP). Desse modo, o núcleo do enunciado melódico coincide com a coluna mais alta da grade estrutural. Daí a naturalidade com a qual o enunciado melódico se associa à frase entoacional, que por sua vez tende a servir de base para a construção do verso na canção popular.

  • A relação enunciado-célula

O enunciado elementar parece ser a unidade superior da hierarquia melódica, ou seja, ele é a mais extensa cadeia de notas passível de análise a partir das suas dependências internas (Hjelmslev,1971:109). Esta é, aliás, uma das diferenças fundamentais entre a melodia da canção popular e as formas musicais da música de concerto, baseadas no desenvolvimento de motivos. Um papel assim proeminente do enunciado elementar talvez se explique pelo fato da canção popular ter sua origem na fala coloquial (Tatit, 2004:153). Versos como “Alguma coisa acontece no meu coração” ou “Quem acha vive se perdendo” são frases verbais, e seria estranho que o cancionista não fosse naturalmente levado a associar tais frases a unidades melódicas correspondentes e coincidentes, dotadas de coesão interna e de um efeito de sentido de totalidade.

Já vimos que o enunciado melódico elementar é constituído por duas células, cada uma das quais encabeçada por uma função harmônica (um acorde), de modo que o fluxo melódico é estabelecido pela direcionalidade criada pela diferença entre estes acordes. Embora o enunciado elementar ocupe um papel de destaque na melodia da canção popular brasileira, por vezes esta se apoia sobre enunciados de três células ou, mais raramente, de uma única célula. Uma tal predominância talvez se deva à simplicidade e à clareza com que o enunciado elementar de duas células estabelece a direcionalidade harmônica que caracteriza o sentido da melodia tonal.

Em canções como Águas de Março, Carinhoso e Bye,bye Brasil, por exemplo, o fio melódico parece estruturar-se sobre segmentos de uma única célula. Veja-se:

Águas de março (Tom Jobim)

#046.49-51
Sílaba                                   é
                PAU      é      PE      drew
                FIN do  ca  min             ew
                RES to  do  tok             ewm
                POU co  so  zin             ewm
                CA  co  de  vi      dre  a  vi
                     é   o  sol      é   a  noi
                    tje  a  mor     tje  o  la
                    çwew an zol          é  pe
                RO  ba  no  cam         pwe  o
                NO  da  ma  deir        cain
                GA      can     DEJ     ew  ma
                TI  ta  pe  reir 
                 |   |   |   |   |   |   |   |   
Nota             N   N   N   N   N   N   N   N                
Pulso            P               P                    
Célula                           C                             
Enunc                            E

Carinhoso (Pixinguinha & João de Barro)

#009.01-02 
FrasFon        [            PhP]                               
Sílaba          Meu co  ra  ÇÃO                               
                Não sei por QUÊ
                Ba  te  fe  LIZ
                quan do te   VÊ
                 |   |   |   |   *   *   *   *   *   *   *   *   *   *   *                
Nota             N   N   N   N                                      
Pulso            P           P           P           P           P           
Célula                       C                                               
Enunc                                               

Bye, bye Brasil (Roberto Menescal & Chico Buarque)

#046.49-51
Sílaba                          BYE bye bra SIL
                 a   UL ti  ma  FI  cha ca  IU
                eu  PEN swen vo CÊS naj tianDEI                  
                ex PLI ca  que TA  tu  dwo KEJ
                eu  SO   an do  DEN tro da  LEI                  
                eu  VI  um  bra SIL  na te  VE                   
                 a  GO  ra  já  TA  tu  do  BEM
                 |   |   |   |   |   |   |   |   *   *   *   *
Nota             N   N   N   N   N   N   N   N                
Pulso                P           P           P           P    
Célula                           C                             
Enunc                            E

A ausência de um claro direcionamento harmônico entre dois acordes subsequentes seguido de pausa cria um efeito de sentido de circularidade no desenvolvimento melódico, que parece poder continuar indefinidamente, sem um claro ponto de chegada. A este efeito de circularidade some-se o fato de que o enunciado de uma única célula é por demais breve, associando-se a versos curtos, o que talvez contribua para a pouca frequência com que ocorre na canção popular brasileira.

Considere-se agora o caso de enunciados que parecem construídos com três células. Seriam enunciados “complexos”, ou apenas poderiam ser pensados como mero desenvolvimento de um enunciado elementar? De fato, parece que tais enunciados sempre podem ser analisados como o resultado da degeminação de duas células. Veja-se,por exemplo, a frase inaugural de Sampa.

Sampa (Caetano Veloso)

#044.01
Sílaba     AL gu  ma  COI sa  com TE  ce  no  MEU co  ra  ÇÃO
           |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |    
Nota       N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N    
Pulso      P           P           P           P           P
Cel        C                       C                       C
Enunc                                                      E

Aqui a frase melódica tem três células e não apenas duas. A questão é saber se as duas primeiras células poderiam constituir um enunciado elementar per se. De fato, este parece ser o caso. Hipoteticamente, a canção poderia ter sido composta, por exemplo, com um enunciado elementar seguido de pausa longa. O que queremos dizer é que tal construção hipotética soa como um enunciado melódico, ou seja, produz tal efeito de sentido. Compare-se por exemplo esta frase artificialmente seccionada com um dos enunciados de Ave Maria.

Sampa (Caetano Veloso)

#044.01a
Sílaba     AL gu  ma  COI sa  com TE  ce
           |   |   |   |   |   |   |   |  
Nota       N   N   N   N   N   N   N   N 
Pulso      P           P           P 
Cel        C                       C
Enunc                              E

Ave Maria no morro (Herivelto Martins)

#070.19-20
Sílaba     E quan do  MO rrwiscu  RE  ce
           E  le  vwa DEUS u  ma  PRE ce
           |   |   |   |   |   |   |   |      
Nota       N   N   N   N   N   N   N   N   
Pulso      P           P           P 
Cel        C                       C
Enunc                              E

Outra canção de Caetano, O Ciúme, oferece mais uma evidência em favor desta hipótese. O primeiro verso “Dorme o sol à flor do Chico, meio dia” apoia-se numa frase de três células ao passo que o décimo “Sei que o levas todo em ti”, construído sobre o mesmo material, corresponde a um enunciado duas células seguido de pausa. Compare-se:

O ciúme (Caetano Veloso)

 
#028.01 
Sílaba     dor     meo SOL          à     flor     do  CHI         co      mei      o  DI           a
Sílaba     sei     kjo LE          vas     to     dwen TI
        *   |   *   |   |   *   *   |   *   |   *   |   |   *   *   |   *   |   *   |   |   *   *   |   
Nota        N       N   N           N       N       N   N           N       N       N   N           N
Pulso                   P               P               P               P               P              
Célula                  C                               C                               C
Enunc                                                                                   E

O mesmo argumento aplica-se à Marina, canção quase que integralmente baseada na repetição de uma frase de três células.

Marina (Dorival Caymmi)

#049.01;12
Sílaba      ma  RI  na  mo  RE  na  Ma  RI  na  vo  CÊ  se  pin TOU
             eu JÁ  des cul PEI mui ta  COI sa
             |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |
Nota         N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N
Pulso            P           P           P           P           P
Célula           C                       C                       C
Enunc                                                            E

Moto contínuo, de Chico Buarque, oferece um exemplo interessante e instrutivo da composição de enunciados. O verso que abre a primeira estrofe (a) contém uma frase melódica de 4 células, ao passo que o verso que fecha a mesma estrofe (b), construído com o mesmo material, contém apenas 2 células, enquadrando-se portanto na definição de enunciado elementar. Mais que isso, a canção é finalizada com um “moto contínuo” de células que se degeminam num espécie de movimento circular, que poderia ser indefinidamente estendido.

Moto contínuo (Chico Buarque)

 
#055.01 e 04  
Síl      (a)  Um ho  mem po  dir ao  FUN     do  do  fun     do  do  FUN     do  se  for     por vo  CÊ
         (b) Bas ta  so  nharcom vo  CÊ
              |   |   |   |   |   |   |   *   |   |   |   *   |   |   |   *   |   |   |   *   |   |   |   *   *   *   *   *
Nota          N   N   N   N   N   N  <N       N   N   N       N   N  <N       N   N   N       N   N  <N  
Pulso                     P              P                P               P              P                P               P
Cel       C                              C                                C                               C
Enunc                                                                                                     E

Extensão do enunciado

A extensão do enunciado melódico depende do tipo de célula que forma sua estrutura básica. Dado que a maioria das melodias é construída com células binárias, ternárias ou quaternárias, cada uma destas com 2, 3 ou 4 pulsos, tem-se um limite das possibilidades combinatórias. Embora a conexão entre o tipo de célula e andamento não seja necessária, melodias de andamento acelerado pedem geralmente uma rápida alternância harmônica, ao passo que melodias lentas tendem a suspender a transição harmônica, sendo favorecidas por células amplas. Compare-se, por exemplo, as melodias de A Galinha e Dois Irmãos. Além disso, a alternância de dois esquemas rítmicos ao longo de uma mesma melodia tem o efeito de sentido de acelerá-la ou desacelerá-la, ainda que mantido o andamento (ver adiante análise de Garota de Ipanema).

A Galinha (Chico Buarque)

#012.01-04
FrasEnt         [                        IP  ]
FrasFon         [           Php  ][     Php  ]
Sílaba              to  do   O  vo queu CHO co  
                        me   O  co  de  NO  vo
                    to  do   O  vo  éa  CLA ra 
                        éa  CA  ra  do  VO  vo
                     |   |   |   |   |   |   |   
Nota                 N   N   N   N   N   N   N   
Pulso                        P           P         
Celula                       C           C
Enunc                                    E

Morro Dois Irmãos (Chico Buarque)

#004.01
FrasEnt     [                                                                            IP                               ]
FrasFon     [            PhP]                            [                              PhP                               ]
Sílaba          Dois Ir MÃOS                               quan do  vai  AL ta  ma  dru GA                              da        
             *   |   |   |   *   *   *   *   *   *   *   *   |   |   |   |   |   |   |   |   *   *   *   *   *   *   *   |   *   *   *   *   *   *   *   *  
Nota             N   N   N                                   N   N   N   N   N   N   N   N               N
Pulso                    P               P               P               P               P               P               P               P               P
Célula                   C                                                               C
EnuncMel                                                                                 E

Anacruse, corpo e coda

Duas propriedades do enunciado elementar precisam ser agora consideradas, sua estrutura interna e o tipo de pausa que o delimita, quando esta existe. Por razões heurísticas dividiremos o enunciado melódico em três segmentos. Consideraremos como anacruse todo o material melódico que antecede o núcleo da primeira célula, como corpo aquele que se estende entre os núcleos da primeira e da segunda células, e, por fim, como coda o material melódico que se estende para além do núcleo da segunda célula.

Assim, por exemplo, a melodia do primeiro verso de Casinha feliz não possui anacruse ou coda, uma vez que todo o material está compreendido entre os dois núcleos:

Casinha feliz (Gilberto Gil)

#007.01
Sílaba          ON  de      re  sis teo     ser TÃO
                 |   |   *   |   |   |   *   |   |      
Nota             N   N       N   N   N       N   N      
Pulso            P               P               P               P
Cel              C                               C
Enunc                                            E

Já no primeiro enunciado de As Vitrines, há um segmento que antecede o primeiro núcleo, uma anacruse portanto:

As vitrines (Chico Buarque)

#003.01
Sílaba    eu te  VE  jo  sa  IR  por  a   I
          |   |   |   |   |   |   |   |   |   *   *
Nota      N   N   N   N   N   N   N   N   N
Pulso             P           P           P
Célula            C                       C
Enunc                                     E

Por fim, em Amor, I Love You, há um segmento que sucede o núcleo da segunda célula (com a síncope), uma coda portanto:

Amor, I Love You (Marisa Monte)

#021.01
Sílaba     DEI xew di  ZER     que te   A      mo
            |   |   |   |   *   |   |   |   *   |   *   *   *   *   *   * 
Nota        N   N   N   N       N   N  #N       N         
Pulso       P               P               P               P            
Célula      C                               C
Enunc                                       E

Veremos adiante que esta segmentação pode nos ajudar a compreender certos processos que ocorrem entre dois enunciados subsequentes, como a soldagem e a degeminação. Além da estrutura interna, a ocorrência de pausa delimitando o enunciado constitui fator decisivo na organização de estruturas de ordem superior (estrofe, parte, refrão). Fundamentalmente, os enunciados podem ser delimitados ou não por pausa e, neste caso, eles se apresentam soldados entre si ou degeminados. Há ainda o caso em que a pausa não ocorre no fim do enunciado, mas logo após o núcleo da primeira célula, o que determina um tipo de encadeamento característico e muitíssimo utilizado na canção popular.

Enunciados delimitados por pausa curta

A pausa tem raízes fisiológicas. Seja na linguagem verbal (na fala coloquial ou no verso), seja na música, a pausa é motivada pela necessidade natural que temos de respirar. Daí a tendência da pausa a ocupar o espaço de tempo necessário à respiração, funcionando como elemento rítmico de ordem superior. Na palavra cantada, texto e melodia operam sinergicamente na construção da pausa, e as mais simples melodias populares usualmente associam versos e enunciados melódicos, ambos delimitados por pausas curtas. A Banda #071 e Gita #047 constituem exemplos didáticos:

A Banda (Chico Buarque)

#071.01-04
Sílaba	              es TA  va  TO   a  NA  vi   *  do
                     do  MEU  a  MOR me  CHA mou  *  pra
            	     pra VER  a  BAN da  PA ssar  *  can
                     can TAN do  COI sas DJA mor  *
                  *   |   |   |   |   |   |   |   *   | 
Nota                  N   N   N   N   N   N  <N       N
Pulso             P       P       P       P       P
Cel               C                               C
Enunc                                             E

Gita (Raul Seixas & Paulo Coelho)

#047.03
FrasEnt        [                             IP   ]
FrasFon        [    PhP   ][    PhP][       PhP   ]
Sílaba           às VE  zes vo  CÊ  me  per GUN ta
                 |   |   |   |   |   |   |   |   |   *   *   *
Nota             N   N   N   N   N   N   N   N   N   
Pulso                P           P           P           P 
Cel                  C                       C
Enunc                                        E

Enunciados delimitados por pausa longa

A pausa pode ser relativamente extensa, a ponto de ter duração similar ou superior ao do próprio enunciado (e do verso) que ela delimita. Esse tipo de pausa é bastante eficaz em canções passionais lentas, e tem implicações sobre a estrutura da estrofe a que pertence. O Ciúme e Construção são exemplos desse tipo de pausa. Nesta última, embora tenhamos uma estrofe de quatro versos, cada qual associada a um enunciado melódico, o arranjo destes não é simétrico.

Construção (Chico Buarque)

#064.01-04  
Síl                   a  MOU da que  la  VEZ co  mo  se  FO ssja  ul         ti  ma
                      (…........................pausa.............................) 
                     bei JOU su   a  mu LHER co  mo  se  FO ssja  ul         ti  ma
                      (…........................pausa.............................) 
                      e  CA  da  fi  lho SEU co  mo  se  FO ssjo  u          ni  co 
                     ja  TRA ve ssou  a  RU   a com  seu PA  sso ti          mi  do
          *   *   *   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   *   *   |   |   *  
Nota                  N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N  #N           N   N  
Pulso     P               P               P               P               P                          
Cel                                                                       C
Enunc                                                                     E

Enunciados não delimitados por pausa

Quando não há pausa delimitando o encadeamento de enunciados, estes podem ser soldados ou degeminados. No primeiro caso tem-se dois enunciados distintos, harmonicamente independentes, unidos por material melódico; no segundo caso, ao contrário, o acorde que fecha o enunciado antecedente é o mesmo que abre o subsequente, de modo que estes acabam por se superpor.

  • Enunciados soldados

Vimos que a função demarcatória da pausa tem suas raízes na mecânica respiratória. Portanto, na melodia da palavra cantada (diferentemente da melodia para instrumentos de teclado ou de corda) a pausa constitui elemento essencial. Ocorre que a associação entre enunciado melódico e verso pode resultar num padrão reiterativo rígido na construção da estrofe e do refrão. Daí a introdução um elemento conector entre os enunciados de modo a quebrar a monotonia do padrão repetitivo. O Xote das Meninas ilustra esse tipo de conexão, onde novo material melódico é adicionado de modo a ligar a coda de um enunciado à anacruse do subsequente.

O xote das meninas (Luis Gonzaga & Zé Dantas)

 
#041.01-04
Sílaba    man da  ca  RU     quan do  fu  lo  ra  na  SE      ca
           é   o  si  NAL kja chu va  che ga  no  ser TÃ       o
          to  da  me  NI  na  que  en jo   a  da  bo  NE  ke   o  si  nal
          que  o   a  MOR     já  che gou no  co  ra  ÇÃO
           |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |
Nota       N   N   N   N       N   N   N   N   N   N   N       N
Pulso          P       P       P       P       P       P       P
Cel                    C                               C
Enunc                                                  E

Já em Noite dos Mascarados, os enunciados são soldados entre si de maneira recorrente, determinando um estilo próprio de construção das estrofes.

Noite dos Mascarados (Chico Buarque)

#059.01-05
Sílaba      QUEM          É    VO    CÊ   a  di  VI nha  se                  
             GOS         TA    DE    MIM ho  jwsDOIS mas ca
             RA          DOS   PRO   CU ram  os SEUS na  mo
             RA dosPERgunTAN   DWA  SSIM    
              |     |     |     |     |   |   |   |   |   |
Nota          N     N     N     N     N   N   N   N   N   N
Pulso         P     P     P     P     P     P     P     P
Cel           C                       C
Enunc                                 E

Enunciados degeminados

Ocorre degeminação quando a segunda célula do primeiro enunciado e a primeira célula do segundo são preenchidas pela mesma função harmônica, que funciona como um pivô entre as células extremas. Em Retrato em branco e preto, por exemplo, os acordes do primeiro enunciado elementar [JA.co.nhe.cos.pa.ssos.de.ssajs.TRA] são Gm e D/F#, e os acordes do segundo [TRA.da.sei.que.não.vai.dar.em.NA] são D/F# e Fm6.

Retrato em branco e preto (Chico Buarque)

#005.01-04
Sílaba   JÁ  co  NHE ços PA ssos DE ssajsTRA da  SEI que NÃO vai DAR em  NA etc
         TRA da  SEI que NÃO vai DAR em  NA
          |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |
Nota      N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N
Pulso     P       P       P       P       P       P       P       P       P
Cel1      C                               C                               
Cel2                                      C                               C
Enunc                                     E¹                              E²

Em Caminhemos temos um exemplo interessante desse tipo de encadeamento porque as duas primeiras são seguidas de pausa enquanto as três últimas, de estrutura rítmica similar às primeiras, são degeminadas. O efeito geral é de que estamos diante de novo material melódico, quando, de fato, temos a repetição de uma mesma estrutura frásica elementar apoiada em dois acordes.

Caminhemos (Herivelto Martins)

#065.01-05 
Sílaba    NÃO              eu não PO sso  lem BRARque tja MEI 
          MEI 
          NÃO              eu pre CI swis que CER que so  FRI 
          FRI 
          FA               ça de  CON ta  kiw TEM po  pa SSOU 
         SSOU              e  que TU dwen tre NÓS ter mi  NOU 
          NOU              e  kja VI  da  não CON ti  nu  OU 
           |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   
Nota       N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   
Pulso      P           P           P           P           P   
Cel        C                                               C 
Enunc                                                      E

Pela mesma razão, não se percebe de imediato que dois dos versos de Romaria, o primeiro pertencente à primeira parte, e o segundo pertencente ao refrão, têm exatamente o mesmo arcabouço estrutural, ou seja, dois enunciados elementares degeminados.

Romaria (Renato Teixeira)

#062.01-02
Sílaba       FEI to  EU  per DI dwin PEN sa  MEN to  SO brew MEW ca  VA      LO  
              I  lu  MI  na  MI najs CU  ri  FUN daw TREM da MI  nha VI      DA
              |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   *   | 
Nota          N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N       N
Pulso         P       P       P       P       P       P       P       P       P
Célula                C                       C                       C
Enunc                                         E¹                      E²

A pausa interna

Um tipo particularmente interessante de degeminação ocorre entre enunciados nos quais a pausa ocorre internamente, não tendo a função demarcatória usual. Este mecanismo é muito eficaz para a criação de canções passionais, uma vez que a pausa pode ser preenchida pelo prolongamento de uma vogal, contribuindo assim para a criação do efeito de sentido da passionalidade. São exemplos, Eu e a brisa, Se eu te pudesse fazer entender, Linda flor e Eu te amo.

Eu e a brisa (Johny Alf)

#066.01-02
Sílaba           AH                 sja ju  ven TU  de  kje sa  BRI     sa
                CAN     tá          fi  ca  sja QUI co  mi  go MAIS     um
                 |   *   |   *   *   |   |   |   |   |   |   |   |   *   | 
Nota             N       N           N   N   N   N   N   N   N   N       N
Pulso            P               P               P               P            
Cel              C                               C
Enunc                                            E

Eu preciso aprender a ser só (Marcos Valle)

#067.01-02
Sílaba        AH                 sew te  pu  DE   sse  fa   ZER  en  ten
             DER                 sem teu  a  MOR  eu   não  PO   sso  vi
              |   *   *   *   *   |   |   |   |    |    |    |    |    | 
Nota          N                   N   N   N   N    N    N    N    N    N
Pulso         P               P               P              P  
Cel           C                               C
Enunc                                         E

Linda flor (Henrique Vogeler, Luiz Peixoto & Marques Porto)

#068.013-14
Sílaba       MAS                                 sje  lum  di  a  sou 
             BER                                que  vo   cê  é   quem 
              É
              |   *   *   *   *   *   *   *   *   |   |   |   |   |   | 
Nota          N                                   N   N   N   N   N   N
Pulso         P               P               P               P            
Cel           C                               C
Enunc                                         E

Eu te amo (Chico Buarque)

#069.01
Sílaba            AH         se  JA  per DE  mos  A  no  ÇÃO da 
                  |   *   *   |   |   |   |   |   |   |   |   |   
Nota              N           N   N   N   N   N   N   N   N   N   
Pulso             P       P       P       P       P       P            
Cel               C                       C
Enunc                                     E