A gramática da palavra cantada é construída sobre dois princípios, o princípio de alinhamento e o princípio de associação. O princípio de alinhamento afirma que a relação entre nota e sílaba é estritamente biunívoca:
Princípio de alinhamento: cada elemento terminal da cadeia melódica (nota) deve ser alinhado a um e apenas um constituinte terminal da cadeia prosódica (sílaba) e vice-versa.Ou seja, o princípio do alinhamento afirma que o número de sílabas da cadeia determina o número de notas da melodia e vice-versa. É o que ocorre com todas as canções, sem exceção, das quais o primeiro verso de Gita serve de exemplo.
Gita (Raul Seixas & Paulo Coelho)
#047.03 Sílaba às VE zes vo cê me per GUN ta | | | | | | | | | Nota N N N N N N N N N
O princípio de alinhamento não é auto-evidente. De fato, o número de sílabas de um verso somente pode ser determinado a priori quando este não apresenta encontros vocálicos (como no caso deste verso de Gita), o que está longe de ser o usual em PB. Um verso como “Quando olhei a terra ardendo”, por exemplo, pode ter, em princípio, 8, 9 ou 10 sílabas. O número final depende do estilo, do registro e da situação de enunciação. Estes fatores determinam as ressilabações que ora reduzem ora aumentam o número de sílabas dos enunciados.
Asa Branca (Luiz Gonzaga & Humberto Teixeira)
#031.01 (10) quan do o lhei a te rra ar den do (9) quan do o lhei a te rrar den do (9) quan do lhei a te rra ar den do (8) quan do lhei a te rrar den do | | | | | | | | | | σ1 σ2 σ3 σ4 σ5 σ6 σ7 σ8 σ9 σ10
Consequentemente, o número de sílabas de um verso é, de fato, uma grandeza flutuante. A questão é similar à da escansão das sílabas poéticas utilizada na metrificação. Como explica Saad Ali:
“Na contagem de sílabas do interior do verso fundem-se frequentemente em sílaba única a terminação vocálica átona e o início vocálico da palavra imediata. Costuma-se dizer que houve “absorção” ou “elisão”, exigida pela técnica versificatória, como se o fenômeno fosse alheio ao falar de todos os dias. Se absorver, elidir, significam eliminar, suprimir ou incorporar uma coisa em outra, não se dará isso senão em caso de serem as vogais em contato iguais ou parecidas. Não há com q’amor, led’e cego, porqu’as mãos senão por hipótese. Ninguém lê verso diferentemente da prosa comum, absorvendo vogais em cada linha. Nem há jeito de dar sumiço a algum dos fonemas em já a luz, no assento, e os barões, etc. E, apesar de tudo isso, sem fazermos violência à expressão usual, os versos soam com o número exato de sílabas e o desejado movimento rítmico”(Ali, 1999).
A análise dos 2115 versos do corpus, no entanto, revela a ocorrência de ressilabações que violentam a “expressão usual”, para usar os termos de Said Ali. A hipótese assumida aqui é a de que tais ressilabações aberrantes resultam do princípio de alinhamento dos terminais e que a relação entre nota e sílaba não é fortuita, mas segue princípios gramaticais do encontro entre texto e melodia.
Para dar sustentação empírica a essa hipótese, serão analisados alguns versos que fogem totalmente às possibilidades de realização da fala, seja do ponto de vista rítmico, seja do ponto de vista dos processos de ressilabação. Tais construções excepcionais contêm vestígios da ação do cancionista no intuito de aumentar ou diminuir o número de sílabas para não violar o princípio de alinhamento.
σ < N
Observe-se, por exemplo, a diérese lew>>le.o no décimo verso de Leãozinho. O fenômeno fere a fonologia do português brasileiro, não ocorrendo em nenhuma realização do português falado, em qualquer estilo ou registro. Consequentemente, ela não pode ser vista como um fenômeno linguístico, mas como um fenômeno melódico-fonológico desencadeado pelo princípio de alinhamento.
Leãozinho (Caetano Veloso)
#043.10 Sílaba léu lé u / => | | Nota N N N N Sílaba QUAN doe LE lhe DOU ra PE LE ao LÉ U | | | | | | | * * * | | | * | Nota N N N N N N N N N N N Pulso P P P P P P P P
O verso admite diferentes divisões que preservam o ditongo, mas que ferem a rítmica da palavra falada ao atrair o acento para os clíticos. Em qualquer dos casos, teríamos relizações anômalas:
Leãozinho (Caetano Veloso)
#043.10b Sílaba QUAN do E le LHE dou RA PE le AO LÉU QUAN doe LE lhe DOU ra A PE le AO LÉU | | | | | | | * * * | | | * | Nota N N N N N N N N N N N Pulso P P P P P P P P
O terceiro verso de Asa branca também não apresenta relação biunívoca entre texto (quatro sílabas) e melodia (cinco notas). Aqui, ao invés de transformar o ditongo em hiato ej => e.i, o cancionista adota uma atitude mais radical e cria um sílaba epentética *ej, com o intuito de restabelecer a biunivocidade.
Asa branca (Luiz Gonzaga & Humberto Teixeira)
#031.03 Sílaba eu per gun tei eu per gun te *ej | | | / => | | | | | Nota N N N N N N N N N N
E repete o processo em #031.16, #031.03 e #031.19
#031.16 Sílaba pra mim vor ta pra mim vor ta *a | | | / => | | | | | Nota N N N N N N N N N N #031.03 Sílaba a Deus do céu a Deus do céu *ai | | | / => | | | | | Nota N N N N N N N N N N #031.19 Sílaba não cho re não não cho re não *viu | | | / => | | | | | Nota N N N N N N N N N N
Dado o modo quase mecânico pelo qual o processo ocorre na canção, as sílabas ai e viu deveriam ser consideradas apenas como sílabas preenchedoras de posições na linha melódica. A canção parece apresentar uma construção rígida que governa a distribuição das sílabas, uma espécie de molde melódico. Em Asa Branca, as sílabas epentéticas ocorrem na primeira, quarta e quinta estrofes, ajustando-se a este molde:
Asa branca (Luiz Gonzaga & Humberto Teixeira)
#031.03-19 Sílaba eu per gun te *ej a deus do céu *aj por que ta ma nha ju di a ção (_) eu tja se gu ro não cho re não *viu kjew vol ta rei *viu meu co ra ção (_) | | | | | | | | | | Nota N N N N N N N N N N
Em Tempo de estio as epênteses se apresentam quase com a mesma sistematicidade. Em pre.gui.ças => pre.gui.i.ças e em te.re.zas => te.re.e.zas o alinhamento ocorre via epêntese; em lej.las => le.i.las o alinhamento se dá por diérese. Tudo leva a crer que não há ordem no processo escolhido. De fato, parece que a fonologia é invisível para a melodia, que estipula apenas a relação biunívoca nota-sílaba, não importa por que meio ela ocorra.
Tempo de estio (Caetano Veloso)
#002.03;15;17 Sílaba que ro pre gui ça que ro pre gui *i ça lan ges e le las lan ges e le *i las cias e te re zas cias e te re *e zas | | | / | => | | | | | | Nota N N N N N N N N N N N N
σ > N
Quando, ao contrário, o número de sílabas é maior que o número de notas, a cadeia pode ser reestruturada por meio de elisões, degeminações, ditongações ou quaisquer outros processos que afetem o núcleo de duas sílabas contiguas reduzindo-as a uma única. Esquematicamente tem-se algo como:
Sílaba σ σ σ / => | Nota N N
Quando estes processos ocorrem em ambientes linguísticos apropriados não causam estranheza. Mas nem sempre é assim. Uma supressão anômala de sílabas sob a pressão da linha melódica ocorre em Valsa brasileira, de Chico Buarque.
#029.04-07 Eu des car ta va os dias
#029.04-07 Em que não te vi
#029.04-07 Co mo de um fil me
#029.04-07 A a ção que não va leu
Como aqui ocorre uma anástrofe (como de um filme, a ação que não valeu versus como a ação de um filme que não valeu), faz-se necessária uma pausa entre o terceiro e quarto versos “um filme//a ação”, a qual bloqueia a ditongação fil.me.a => *fil.mja. Por outro lado, nada impede que ocorra a ditongação em de.um => djum. No entanto, o fator decisivo na realização ou não das ditongações não é linguístico, mas musical. Para não violar o princípio de alinhamento dos elementos terminais, a ditongação provável de.um => djum se realiza, mas a ditongação improvável fil.me.a => *fil.mja também se realiza .
Valsa Brasileira (Chico Buarque)
#029.04-07 Sílaba co mo de um fil me a a ção co mo djum fil mja ção | | / | | | / => | | | | | | Nota N N N N N N N N N N N N
Como a fonologia tem acesso à sintaxe (Abaurre,1996), esse tipo de reestruturação não ocorreria na fala. Tudo indica, porém, que a quase-gramática da palavra cantada pode ignorar a sintaxe quando o que está em jogo é a preservação do princípio do alinhamento dos terminais.
Outro exemplo de que a gramática da palavra cantada é relativamente independente da gramática da palavra falada pode ser observado numa degeminação que ocorre na canção O rouxinol. Segundo Bisol (2001) há uma restrição rítmica que limita a aplicação da degeminação ao encontro de duas vogais apenas quando a segunda não porta acento primário. Dada essa restrição, a degeminação ocorre em (a) mas não ocorre em (b).
(a) [me.NI.na.a.LE.gre] => [me.NI.na.LE.gre]
(b) [me.NI.na.AL.ta] => *[me.NI.NAL.ta]
No entanto essa restrição é violada em O Rouxinol e a degeminação se realiza a despeito da presença do acento na segunda vogal:
Sílaba tra TEI da SU a A sa TRA tei DA su A sa | | | | / | => | | | | | | Nota N N N N N N N N N N N N
Mais uma vez, é o princípio de alinhamento dos terminais que explica esta violação, uma vez que a linha melódica possui seis notas e o texto sete sílabas, determinando, portanto, a degeminação, a despeito da restrição apontada por Bisol.
É claro que também é possível manter a estrutura silábica intacta e a ela ajustar a melodia inserindo ou apagando notas. É este mecanismo que está na base da distinção entre os dois principais tipos de canção, as canções temático-passionais que sujeitam o texto à estrutura da melodia, e as canções figurativas que fazem o contrário, preservam o texto desestruturando a melodia (ver entoação).