O princípio de alinhamento faz referência apenas às unidades terminais, nota e sílaba, sem qualificá-las. O que se tem no nível dos terminais é uma cadeia de sílabas abstratas alinhada a uma cadeia de notas abstratas. O princípio explica porque ocorrem reestruturações que aumentam ou diminuem o número de sílabas do texto, mas não explica a alteração da qualidade prosódicas destas.
O fato de que o sétimo verso de O rouxinol tenha seis sílabas e não sete é uma decorrência direta do princípio de alinhamento.
O rouxinol (Gilberto Gil & Jorge Mautner)
#033.07 Sílaba tra tei da su a a sa tra tei da su a sa | | | | / | => | | | | | | Nota N N N N N N N N N N N N
Mas além da inesperada degeminação, as sílabas sofrem também alterações acentuais que reorganizam o verso ritmicamente. Veja-se:
O rouxinol (Gilberto Gil & Jorge Mautner)
#033.07 Sílaba tra TEI da SU a A sa TRA tei DA su A sa | | | | / | => | | | | | | Nota N N N N N N N N N N N N
Tal distribuição de proeminências pode ser explicada pela segunda condição de boa formação da palavra cantada, que diz respeito não mais ao alinhamento, mas à associação entre os elementos não-terminais da hierarquia melódica e da hierarquia prosódica.
Princípio de Associação: Elementos não-terminais da hierarquia prosódica devem ser preferencialmente associados aos elementos não-terminais da hierarquia melódica.
Quando a cadeia de sílabas é alinhada à cadeia de notas, os núcleos das divisões da melodia (pulso, célula, enunciado) atraem os núcleos dos constituintes prosódicos (palavra, frase fonológica e frase entoacional), de onde resulta uma associação entre proeminências melódicas e proeminências linguísticas.
O Pulso
A mais básica dessas associações por atração ocorre entre os pulsos da melodia e as sílabas acentuadas do texto. A regra geral é a de que o pulso tem a capacidade de atrair o acento silábico. É o pulso que determina a distribuição do acento, de modo que sílabas a ele associadas são mais proeminentes que sílabas não alinhadas. Para representar esta relação é necessário introduzir uma linha com os pulsos abaixo da linha das notas. A cada pulso estará associada uma sílaba proeminente, grafada em caixa alta.
Você vai me seguir (Chico Buarque)
#022.01 Sílaba vo CE VAI me se GUIR | | * * | | | | * * * Nota N N N N N N Pulso P P P P
É claro que o cancionista procura naturalmente fazer coincidir os acentos primário e secundário com os pulsos que dividem regularmente a linha melódica. O princípio de associação só se mostra efetivamente quando, como no verso de Rouxinol, essa tendência natural é violada. Se a distribuição de proeminência musicais não coincide com a distribuição de proeminências linguísticas, estas são geralmente adaptadas por meio de deslocamentos acentuais.
O rouxinol (Gilberto Gil & Jorge Mautner)
Sílaba tra tei da su a a sa TRA tei DA su A sa | | | | / | >> | | | | | | Nota N N N N N N N N N N N N Pulso P P P
Esse tipo de deslocamento acentual não
Há um diferença fundamental entre a métrica verbal e a métrica musical. Na primeira, o pé, unidade rítmica, organiza-se seja em torno da sílaba, seja em torno do acento, de onde a clássica (e ao que tudo indica anacrônica) divisão das línguas do mundo entre aquelas que têm ritmo silábico (o italiano e o espanhol, por exemplo) e aquelas de ritmo acentual (o inglês, por exemplo) (ver a respeito Barbosa, 2006). No entanto, em todas as línguas naturais (i) o inventário rítmico é reduzido, pois segundo Hayes2 existem apenas pés binários e degenerados, e (ii) as estruturas rítmicas não são recursivas stricto senso.
Na música, ao contrário, as estruturas rítmicas são muito mais complexas, em primeiro lugar porque a gama de valores de duração e intensidade é mais ampla, uma vez que a relação entre seus constituintes não pode ser definida apenas em termos de proeminência relativa. Ao contrário, ela precisa ser plenamente especificada a partir de um inventário de dezesseis valores de duração (mínima, semínima, colcheia, etc.) e três valores de intensidade (forte, meio-forte, fraco). Assim, se a língua atribui às quatro sílabas da frase fonológica [o.MEU.a.MOR] uma única representação estrutural possível, na qual se alternam valores W e S, na música, devido à riqueza de suas categorias rítmico-melódicas, a alternância W-S é apenas uma dentre inúmeras possibilidades. Por exemplo, na canção O meu amor (Chico Buarque) encontramos a sequência S-S-W-S:
Em segundo lugar, a música apresenta uma estrutura rítmica recursiva stricto senso, cuja base é o conceito de divisão musical e que se expressa através da hierarquia de valores de duração.
A combinação entre a riqueza das categorias rítmicas e a recursividade das estruturas rítmicas cria um abismo entre música e palavra. Na palavra cantada, no entanto, há uma tendência natural a associar o pulso melódico ao acento silábico, seja ele primário ou secundário. Dizemos que esta tendência é natural apenas para frizar que, sendo a música dotada de pulsos, e sendo a cadeia linguística dotada de proeminências, é natural que estas saliências se atraiam. Como vimos, o princípio de associação diz respeito sobretudo a uma tendência à atração entre elementos unidades melódicas e unidades linguísticas.
Dado que o pulso atrai o acento, ele tem o poder de reestruturar o pé prosódico, como acabamos de ver em O rouxinol. De maneira semelhante, em Tempo de estio, o ritmo ternário transforma-se em binário pela associação com o pulso [QUE.ro.co.MER>>que.RO.co.MER].
Sílaba que RO co MER que RO ma MAR
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Nota N N N N N N N N
Pulso P P P P P
Ao contrário, em Carinhoso, é o ritmo binário que se transforma em ternário pela mesma razão [meu.CO.ra.ÇÃO>>MEU.co.ra.ÇÃO].
Sílaba MEU co ra ÇÃO NÃO sei por QUE
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Nota N N N N N N N N
Pulso P P P P P P
O fato de o pulso atrair o acento explica a maioria dos deslocamentos acentuais, tão comuns na canção popular. Do ponto de vista da interface entre música e linguagem, é interessante observar o quanto tais deslocamentos afetam a gramática fonológica do português. Vejamos alguns casos.
Sabe-se que os clíticos são partículas átonas sintaticamente independentes (plano do conteúdo) mas fonologicamente dependentes da palavra (plano da expressão). Por conta desta dependência o clítico nunca é acentuado. Como a hierarquia melódica parece não “enxergar” nem a fonologia, nem a sintaxe, nem o discurso, o clítico pode sim ser acentuado na palavra cantada. É o que ocorre de maneira quase didática em Xica da Silva. No refrão desta canção o pulso impõe uma divisão binária onde esperaríamos uma divisão ternária [XI.ca.da.SIL>>XI.ca.DA.%.SIL]. Tal reajuste leva à acentuação do clítico.
Sílaba XI ca da SIL XI ca DA SIL
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Nota N N N N
Pulso P P P
A presença do pulso também determina processos de ressilabação. Em Morro Dois Irmãos, a elisão não ocorre porque o alinhamento de proeminências ao pulso torna tônica a vogal final da primeira palavra prosódica [Now.tra>>now.TRA], e a elisão apenas ocorre se ambas as vogais forem átonas3. Consequentemente, a elisão dá lugar a uma ditongação, que admite a vogal acentuada.
Sílaba ju o que se RA noutraj xis TEN
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Nota N N N N N N N N N
Pulso P P P
A ação do pulso parece poder afetar também a qualidade da vogal da sílaba a ele associada. No bordão Olê Peixe, a vogal final postônica, reduzida, cede lugar a uma vogal plenamente especificada [Pej.xI>>pej.XE].
Sílaba o LE pej XE o LE pej XE
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Nota N N N N N N N N
Pulso P P P P P P P
Já no bordão Olô Porco, é a vogal posterior que recebe o acento, tornando-se plenamente especificada [POR.cʊ >>por.CO].
Sílaba o LE por CO o LE por CO
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Nota N N N N N N N N
Pulso P P P P P P P
Por fim, a canção infantil Atirei o pau no gato apresenta como que um síntese dos efeitos da associação pulso-acento. No grupo clítico [do.BE.rʊ], reestruturado em [DO.be.RRO], temos:
(i) a acentuação do clítico [do>>DO];
(ii) o alçamento da vogal média-baixa [bε>>be]; e
(iii) o abaixamento da vogal posterior [rʊ>>ro].
Estes dois últimos processos, aliás, estariam em acordo com a fonologia do PB que prevê a neutralização das vogais postônicas. Segundo Câmara Jr.4 e Wetzels5, no PB ocorrem sucessivas simplificações do sistema de sete vogais dentro de determinados contextos (pretônico, postônico e postônico final) e dentro de certos domínios (palavra prosódica, pé e fronteira de palavra). A primeira neutralização, que diz respeito ao alçamento das médias [ɔ] → [o] e [ε] → [e], tem uma motivação morfológica, como se pode observar nas alternâncias em [pɔrta] → [porteiro] e [bεlo] → [beleza], por exemplo. Na palavra cantada, ao contrário, o alçamento tem motivação musical, uma vez que não há nenhuma transformação morfológica ou qualquer outro fator linguístico envolvido no processo.
No caso, ao transformar o pé troqueu em iambo [Bε.rʊ>>be.RO], o deslocamento acentual impede a neutralização da átona final [*o>>ʊ] e, ao mesmo tempo, promove o alçamento da vogal média [ε>>e].
Sílaba DO be RRO DO be RRO kju GA to DEU
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Nota N N N N N N N N N N
Pulso P P P P P P
3.3.1 A síncope
Qualquer método de representação da melodia da canção, notadamente no caso da canção popular brasileira precisa dar conta da síncope, ou seja, do deslocamento à esquerda do acento silábico com relação ao pulso. Observe-se, por exemplo, a grade estrutural do primeiro verso de Samba da minha Terra:
Sílaba Sam BA da mi nha TE rra dei xa GEN te mo le
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Nota N N N N N N N N N N N <N
Pulso P P P P
Aqui, a sílaba tônica da palavra [MO.le] está desassociada de P. Para representar este deslocamento à esquerda característico da síncope, a nota correspondente é grafada <N. Evidentemente, tal deslocamento não invalida o princípio básico de que o pulso é um atrator da tonicidade. Aliás, a síncope se define por ser uma nota cujo ataque corre na parte fraca de um tempo, ou seja, entre dois Ps, mas que se prolonga até a parte forte (na nossa terminologia, até o próximo P), e, exatamente por isso, faz sentido falar-se em “deslocamento”.