Princípios

PRINCÍPIO DE HIERARQUIAPalavra cantada é o produto da superposição de duas estruturas hierárquicas não-isomórficas, uma prosódica e outra melódica.

Na palavra cantada, a hierarquia prosódica projeta sua estrutura sobre a cadeia melódica e a hierarquia melódica projeta sua estrutura sobre a cadeia prosódica. Dado que hierarquia melódica e hierarquia prosódica não são isomórficas, dessa dupla projeção podem resultar reestruturações na cadeia melódica, que se adequa à estrutura prosódica, ou reestruturações na cadeia prosódica, que se adequa à estrutura melódica. Em função dessa dupla projeção o cancionista “ajusta” texto e melodia de modo a satisfazer as condições de boa formação da palavra cantada. Tal ajuste é feito mediante regras de alinhamento ou associação entre unidades melódicas e constituintes prosódicos.

HIERARQUIA PROSÓDICA. São quatro os constituintes prosódicos pertinentes para a palavra cantada: sílaba (σ), pé (Σ) frase fonológica (PhP) e frase entoacional (I).

                                I
                              /   \
                             Php   ...
                            /   \
                            Σ   ...
                          /   \
                          σ   ...

A hipótese da hierarquia prosódica surge nos anos 80 com os trabalhos de Nespor & Vogel (1986), Selkirk (1980) e Hayes (1989). No modelo mais aceito para a análise do português brasileiro falado, a hierarquia prosódica apresenta sete níveis: sílaba, pé, palavra prosódica, grupo clítico, frase fonológica, frase entoacional e enunciado (Bisol, 1986). As análises do corpus feitas até o momento mostram que são quatro os níveis da hierarquia prosódica pertinentes para a palavra cantada: sílaba, pé, frase fonológica e frase entoacional.

HIERARQUIA MELÓDICA. As unidades da hierarquia melódica são nota (n), pulso (p), função harmônica (h) e frase (F).

                                 F
                               /   \
                              h   ...
                             /   \
                            p   ...
                           /   \
                          n   ...

A principal diferença entre fala e canto é o fato de que a entoação da fala não é estruturada ao passo que a melodia do canto exibe uma estrutura hierarquizada. Quatro unidades melódicas são pertinentes para a gramática da palavra cantada: nota, pulso, função harmônica (acorde) e frase.

PRINCÍPIO DE RIGIDEZ ESTRUTURAL. A rigidez da ligação entre constituintes prosódicos e unidades melódicas é determinada por sua posição hierárquica. Quanto mais baixa a posição de uma unidade na hierarquia, maior é a rigidez da ligação.

A relação que se estabelece entre prosódia e melodia é estratificada e hierarquizada. Os elementos mais baixos na hierarquia, nota e sílaba, estabelecem uma relação biunívoca inviolável. As unidades imediatamente superiores, pulso e pé prosódico estabelecem uma relaçõa de associação, mais fraca que o alinhamento, e que pode ser violada. As unidades seguintes, função harmônica e frase fonológica estabelecem uma relação de associação ainda mais fraca, sendo frequentemente violada. Por fim, as unidades superiores, frase entoacional e frase melódica apresentam a mais tênue das ligações, podendo-se mesmo questionar sua existência. Dado que na palavra cantada há uma mútua projeção dessas hierarquias e, dado o Princípio da Rigidez Estrutural, a maneira mais conveniente de representá-las consiste em sobrepô-ĺas, invertendo a relação de dominância entre as unidades da hierarquia melódica. Trata-se de recurso heurístico que auxilia na visualização dos processos fonológicos e rítmicos que ocorrem na palavra cantada.

                                I
                              /   \
                             Php   ...
                            /   \
                            Σ   ...
                          /   \ 
                          σ   ...
                          n   ...
                          \   / 
                            p   ...
                            \   /
                              h   ...
                              \   /
                                F

PRINCÍPIO DE ALINHAMENTO DOS TERMINAISCada terminal da hierarquia melódica (nota, n) deve ser alinhado a um e apenas um terminal da hierarquia prosódica (sílaba,σ) e vice-versa.

Na entoação da fala, toda e qualquer sílaba deve estar associada a ao menos um tom e todo e qualquer tom deve estar associado a ao menos uma sílaba. Porém, o alinhamento entre sílaba e tom, ou seja, a relação biunívoca sílaba/tom é apenas um caso particular possível que decorre do princípio de associação prosódia/segmentos (Goldsmith, 1979:22). Na palavra cantada, ao contrário, a relação entre nota e sílaba é sempre biunívoca. Em virtude do princípio de alinhamento dos terminais, o número de sílabas da cadeia deve ser exatamente igual ao número de notas da melodia. Assim, (1) é uma cadeia bem formada ao passo que (2) e (3) são cadeias são mal formadas.

        (1)nn = σn                                     
         σ σ σ...σ                 
         | | |...|        
         n n n...n 

        (2)nn > σn
         σ  σ  σ
         | / \ |
         n n n n 

        (3)nn < σn
         σ σ σ σ
         | \ / |
         n  n  n 

Embora não se possa demonstrar que o princípio de alinhamento é inviolável, pode-se elaborar um procedimento para verificá-lo, que consiste em comparar diferentes versos de uma mesma melodia. Se o número de sílabas do verso é diferente do número de notas de uma melodia, uma das duas cadeias deve ser reestruturada. São quatro as possibilidades de reestruturação:

(2) violação do princípio de alinhamento dos terminais: nn < σn

(2.1) Regra de inserção de n:  ∅ → n / nn < σn
(2.2) Regra de apagamento de σ:  σ  → ∅ / nn < σ

(3) violação do princípio de alinhamento dos terminais: nn > σn

(2.1) Regra de inserção de σ:  ∅ → σ / nn > σn
(2.2) Regra de apagamento de n:  n  → ∅ / nn > σ

PRINCÍPIO DE ASSOCIAÇÃO RÍTMICA. Será atribuído o traço [+acento] à sílaba associada ao pulso melódico.

O princípio de alinhamento dos terminais faz referência apenas às unidades terminais, nota e sílaba, sem qualificá-las. O princípio explica porque ocorrem reestruturações que aumentam ou diminuem, via inserção e apagamento, o número de sílabas do texto ou o número de notas da melodia. Mas o princípio não explica a alteração da qualidade prosódicas destas. Quando a cadeia de sílabas é alinhada à cadeia de notas, os núcleos das divisões da melodia (pulso, função harmônica, cadência) atraem os núcleos dos constituintes prosódicos (palavra, frase fonológica e frase entoacional), de onde resulta uma associação entre proeminências melódicas e proeminências linguísticas. A mais básica dessas associações por atração ocorre entre os pulsos da melodia (p) e as sílabas acentuadas do pé prosódico (Σ). A regra geral é a de que o pulso tem a capacidade de atrair o acento silábico. É o pulso que determina a distribuição do acento, de modo que sílabas a ele associadas são mais proeminentes que sílabas não alinhadas. Uma associação binária, por exemplo, assume a seguinte forma:

                           
                             Σ   Σ   
                             σ σ σ σ     
                             | | | |
                             n n n n   
                             p   p   

Se denominanrmos S e s as sílabas proeminente e não proeminente de um pé prosódico, temos três possibilidades de associação:

(1) O pulso incide sobre a S, sem outro efeito;

(2) s e S não são adjacentes e o pulso incide sobre s. s é acentuada;

σ →[+ac]  / [+p]

(3) s e S são adjacentes e o pulso incide sobre s. S é desacentuada;

σ[+ac] → σ[-ac] / __σ[+p]

Este último caso é o chamado Desalinhamento Acentual, já reportado por Halle e Dell:

“Sejam S e s duas sílabas quaisquer, em qualquer ordem, e seja S acentuada e s não-acentuada. Haverá um desalinhamento acentual se S e s forem sílabas adjacentes num mesmo verso e o pulso incidir sobre s mas não incidir sobre S.” (Halle & Dell, 2009:6)

PRINCÍPIO DE ASSOCIAÇÃO HARMÔNICO-SEMÂNTICA. Pulsos que coincidem com balisas harmônicas do verso atraem os núcleos de frases fonológicas, preenchidos por palavras lexicais.

A melodia da canção popular é tonal. A cadeia de notas de uma melodia tonal é dominada por funções harmônicas subjacentes que emergem à superfície como acordes (h). Assim como a melodia é ritmicamente demarcada pelos pulsos – os quais percebemos intuitiva e naturalmente quando batemos os pés ou as mãos acompanhando uma melodia –, ela é também harmonicamente demarcada pelas funções harmônicas, que são percebidas como os lugares onde, entre outras coisas, o violonista troca de acordes e o contrabaixista toca a nota mais longa da linha do baixo. Os dados do corpus mostram que uma função harmônica tende a se alinhar ao cabeça de uma frase fonológica (PhP), cujo núcleo é ocupado por palavra lexical, ou seja, nome, verbo, adjetivo e advérbio. Assim, em representação esquemática:

                                PhP
                             Σ   Σ   
                             σ σ σ σ     
                             | | | |
                             n n n n   
                             p   p
                                 h