A gramática da palavra cantada esta baseada na relação de alinhamento entre texto e melodia. De um lados temos os constituintes prosódicos, sílaba, pé, palavra prosódica, grupo clítico, frase fonológica e frase entoacional. De outro, temos os constituintes musicais ser, nota, tactus, célula e frase melódica. alinhados aos constituintes melódicos de acordo com certas regras de preferência estabelecidas por duas condições de boa formação. A primeira condição de boa formação diz respeito ao alinhamento dos constituintes terminais, nota (n) e sílaba (σ). A segunda diz respeito ao alinhamento dos constituintes não-terminais da cadeia prosódica, pé (Σ), palavra fonológica (ω), frase fonológica (PhP), frase entoacional (I) e enunciado (U), e os constituintes não-terminais da cadeia melódica, tactus (T), célula (C), frase melódica (M).
1 – Nota/Sílaba
(1) Alinhamento de Constituintes Terminais:
Cada constituinte terminal da cadeia melódica (nota) deve ser alinhado a um e apenas um constituinte terminal da cadeia prosódica (sílaba) e vice-versa.
Esta condição estabelece a primeira diferença estrutural entre palavra falada e palavra cantada, mais precisamente entre entoação e melodia. Na entoação, uma sílaba pode ser associada a mais de um tom e, simetricamente, um tom pode ser associado a mais de uma sílaba. Na melodia, a relação entre tom e sílaba é sempre biunívoca. Em virtude dessa condição, o número de sílabas da cadeia deve coincidir com o número de notas da melodia. Tem-se então três possibilidades: (a) a condição é satisfeita; (b) a condição não é satisfeita porque a cadeia melódica é mais extensa que a cadeia prosódica, e (c) a condição não é satisfeita porque a cadeia prosódica é mais extensa que a cadeia melódica.
(a) Silaba = Nota. Temos aqui a relação de compatibilidade perfeita entre texto e melodia do ponto de vista de seus elementos terminais:
<009> Sílaba Meu co ra ÇÃO Não sei por QUÊ Ba te fe LIZ quan do te VÊ === | | | | Nota N N N N
(b) Sílaba < Nota. Nesse caso há incompatibilidade entre texto e melodia, de onde decorrem alguns fenômenos como, por exemplo:
- epêntese silábica: é a criação de uma sílaba estranha à palavra para ajustá-la à melodia:
<031> Sílaba Eu per gun TEI Eu per gun TE EI === | | | / >> | | | | | Nota N N N N N N N N N N
- diérese: é a criação de uma sílaba pela separação das vogais de um ditongo:
<043.10> (a),(b) e (c) Sílaba QUAN doe le lhe dou ra PE le ao LÉU >> QUAN doe le lhe dou ra PE le ao LÉ U (a) QUAN doe le lhe dou ra PE le ao LÉU >> QUAN do e le lhe dou RA pe le AO léu (b) QUAN doe le lhe dou ra PE le ao LÉU >> QUAN doe le lhe dou ra A pe le AO léu (c) === | | | | | | | | | / >> | | | | | | | | | | | Nota N N N N N N N N N N N N N N N N N N N N N N
Considerando-se os processos normais da fala coloquial, com a ditongação em do.e>>dwe e a elisão em ra.a>>ra, o verso teria dez sílabas
[quan.dwe.le.lhe.dou.ra.pe.le.ao.léu]
A tritongação em le.ao>>ljaw não se realiza por ocorrer na fronteira entre duas frases fonológicas. Note-se que o verso temEm (2c) são duas sílabas que que se superpõem a uma única nota. Nesse caso, para evitar a violação de ACT pode-se (i) inserir uma nota epentética ou (ii) apagar uma sílaba. Ou seja, a implementação de processos de ressilabação, como a ditongação, degeminação, elisão, epêntese entre outros constitui uma estratégia para evitar a violação de ACT.
2 – Tactus/Pé
A segunda das condições de boa formação da palavra cantada diz respeitos ao alinhamento de constituintes não-terminais:
(3) Alinhamento de Constituintes Não-Terminais (ACNT): Os constituintes não-terminais da cadeia prosódica devem ser alinhados aos constituintes não-terminais da cadeia melódica.
Diferentemente de ACT, que diz respeito ao alinhamento nota-sílaba, ACNT diz respeito à distribuição de proeminências relativas decorrentes desse alinhamento. Na melodia, a proeminência relativa é expressa em termos de posições fortes e fracas ao longo do compasso; na língua, a proeminência relativa contrasta sílabas acentuadas e não acentuadas. Quando a cadeia de sílabas é alinhada à cadeia de notas (ACT), pode ou não ocorrer um concomitante alinhamento entre proeminências prosódicas e proeminências melódicas. ACNT prescreve que, no caso do não-alinhamento entre proeminência prosódica e proeminência melódica, as primeira deve ser reestruturada para se conformar à segunda.
Observe-se, por exemplo, a relação entre estrutura prosódica (3a) e estrutura melódica (3b) do décimo verso de Anunciação [190]:
(3a) [[eu te anunCIo]Php [nos SInos]Php [das cateDRAIS]Php]I
(3b)[[eu tea nun CI]C [o nos si NOS]C [das ca te DRAIS]C]F
Em (3a) temos três frases fonológicas com as proeminências incidindo sobre as sílabas CI, SI e DRAIS; em (3b) temos três células com as proeminências incidindo sobre as sílabas CI, NOS e DRAIS. Como ACNT toma os constituintes melódicos como base prescreve é que
3 – Célula/Palavra, Grupo Clítico e Frase Fonológica
Célula melódica constitui a menor unidadeNossa hipótese de trabalho é a de que ACT e ACNT são necessários e suficientes para um conjunto de perturbações prosódicas encontradas na palavra cantada. Estas duas condições de boa formação pressupõem a existência de uma hierarquia melódica. Em outras palavras, a cadeia melódica não é amorfa, ao contrário, é estruturada e apresenta uma hierarquia de constituintes. É essa hierarquia que explica a realização ou não de reestruturações prosódicas no componente fonológico.
Por trás desse fenômeno está a constituição de HP e HM. A hierarquia prosódica é construída com informações diversas, da fonologia, morfologia e sintaxe. Por essa razão
É fácil musicar uma palavra, difícil musicar uma frase e mais ainda um texto. Por que? Porque a estrutura prosódica é menos rígida que a estrutura melódica. Por essa razão, a palavra se dobra à melodia e não inverso.