Conclusão

Conclusão

Para dar vida ao objeto de uma ciência é preciso antes de tudo nomeá-lo, forjar uma metalinguagem que lhe seja especificamente dedicada. Esta é constituída, via de regra, por um corpo de conceitos, um método de transcrição e um sistema de notação próprios. É exclusivamente por meio desse aparato simbólico-conceitual que se define o que é pertinente (o domínio do objeto) e o que não o é (o domínio do abjeto). E uma vez estabelecida a metalinguagem, algo pode ser dito do objeto (pois temos as palavras), mas nada pode ser dito do abjeto (pois nos faltam as palavras).

No domínio da fonologia, por exemplo, as noções de fonema, alofone, par mínimo, oposição participativa, etc., assim como a notação a elas associada, dão vida à forma da expressão linguística (o objeto) mas silenciam a substância da expressão linguística (o abjeto). Transcrever “corta” e “mesmo” como /kɔɾtɐ/ e /meSmʊ/ tem um efeito residual não negligenciável de apagar as muitas variantes e pronúncias possíveis dessas palavras, uma vez que não dispomos dos símbolos necessários para expressá-las. Tudo se passa como se estas pronúncias não existissem. Portanto, o ato de dotar a ciência com um aparato simbólico-conceitual cumpre um papel que vai muito além de “representar” seu objeto. Trata-se de um método sistemático de selecionar não apenas o que vemos, mas, sobretudo, o que não pode ser visto.  Por outro lado, resta ao abjeto, que caprichosamente insiste em se manifestar, ser tratado com um jargão feito sob medida para o objeto, ou seja, com uma metalinguagem que foi concebida para escamoteá-lo.

Posto isto, podemos agora introduzir o problema que nos traz aqui. Tomando a semiótica greimasiana em seu conjunto, e mesmo em seus múltiplos desdobramentos, podemos afirmar, sem receio de errar, que seu abjeto por excelência é o plano da expressão. Na triagem fundadora da semiótica greimasiana, “as estruturas textuais estão fora do percurso gerativo do sentido, e o exame do plano da expressão não faz parte das [suas] preocupações…” (Barros, 2005, p.76). Coerentemente, inexiste na semiótica greimasiana uma terminologia técnica dedicada ao plano da expressão.  Sabemos que já a partir dos anos 70 foram realizadas muitas e importantes pesquisas sobre a significação em domínios nos quais o plano da expressão desempenha um papel bem mais relevante do que aquele desempenhado na linguagem verbal, como a semiótica plástica, musical, semiótica da canção, cinema, dança, etc. Em todos esses domínios o plano da expressão recebe uma atenção especial, evidentemente. Porém essa atenção se dá sempre e necessariamente pelo viés da significação. Mais que isso, a significação tem que estar circunscrita aos limites do percurso gerativo de sentido, seja este tomado na versão original proposta por Greimas, seja na sua ampliação em profundidade proposta por Zilberberg. Na ausência desse fato de significação, a expressão é tomada como um simples veículo do plano do conteúdo e, nesse caso, não merece atenção. O plano da expressão é, simplesmente, não-pertinente. Essa abordagem do texto é coerente com a triagem inaugural da semiótica greimasiana, para a qual investigar o plano da expressão em si mesmo não faz o menor sentido. 

Pois bem, mesmo correndo o risco de fazer uma indagação sem sentido algum, nos perguntamos: por que não investigar o plano da expressão independentemente do percurso gerativo de sentido? Pensamos que existem algumas boas razões para tal, mas aqui, em função do espaço que nos é concedido, nos deteremos apenas sobre duas delas. 

A primeira é de ordem teórica. Uma das características definidoras de uma semiótica é a não-conformidade entre seus planos. Dessa não-conformidade decorre a exigência de que tenhamos metalinguagens específicas para cada um deles e, consequentemente, que os dois planos sejam analisados separadamente um do outro. Assim, 

 

“…desde o momento em que, num determinado estádio da análise desse objeto complexo, uma ausência de conformidade se denuncia, o analista deve reconhecer a existência de duas hierarquias diferentes e, em consequência, procurar esgotar a análise completa em duas análises separadas. É assim que, se o objeto de análise é uma semiótica,….torna-se necessário distinguir os dois planos e analisá-los separadamente, a partir do momento em que, na análise do conjunto, eles revelem entre si uma diferença de estrutura…” (Hjelmslev, 1991, p. 54) 

 

Esta diretriz metodológica é fundamental. É ela que autoriza Greimas a propor a teoria semiótica do discurso, cujo objeto está integralmente circunscrito ao plano do conteúdo. A análise deste, portanto, independe da análise do plano da expressão. Dado que os planos são apenas entidades formais, o que é válido para um, é válido para o outro. Em suma, a considerarmos o argumento hjelmsleviano, não há como fugir de uma análise independente do plano da expressão, realizada com metalinguagem própria.   

A segunda razão é de ordem empírica. As diferenças entre as linguagens não diz respeito apenas à materialidade da expressão (as ordens sensoriais visual, auditiva, tátil, etc), mas também ao grau de complexidade apresentado pelas estruturas que compõem o plano da expressão de cada uma delas. Sob esse aspecto, as linguagens verbal e musical ocupam posições diametralmente opostas.  Na primeira, o plano da expressão é quase transparente, apresenta estruturas pouco rígidas, basicamente restritas aos seus elementos terminais. Embora as sílabas (cadeia segmental) e os acentos (cadeia suprasegmental) da cadeia da fala sejam fortemente estruturados, a liberdade de combinação é praticamente ilimitada quando ascendemos na hierarquia aos elementos mais extensos. Essa maleabilidade constitutiva do plano da expressão verbal é necessária para que qualquer conteúdo possa ser expresso.  O papel do plano da expressão verbal não consiste apenas em veicular a significação, mas em veicular qualquer significação possível ou imaginável, e, por isso, sua estrutura não pode ser um obstáculo à construção da significação. Ao definir a língua como uma “paradigmática cujos paradigmas se manifestam por todos os sentidos” (Hjelmslev, 1975, p.115), ou seja, como uma semiótica capaz de traduzir quaisquer outras semióticas, Hjelmslev se pergunta da razão de ser dessa tradutibilidade ilimitada das línguas naturais, e avança a hipótese de que “a razão disso é a possibilidade ilimitada de formação de signos e as regras bastante livres que regem a formação de unidades de grande extensão” (Hjelmslev, 1975, p.115).

Não se pode comparar essa tênue estrutura da cadeia da fala com a complexidade do plano da expressão musical. Incapaz de denotar qualquer sentido que seja, a música depende visceralmente de uma forte estruturação para, simplesmente, não perecer. A estrutura é a razão de ser da música. São por razões de estrutura, qualquer que seja esta (rítmica, harmônica, melódica, timbrística, etc) que um motivo musical ganha sobrevida e não desaparece do nosso horizonte perceptivo, como ocorre com aquela palavra que acabamos de pronunciar.  Padrões (ou seja, estruturas recorrentes) harmônicos e timbrísticos explicam-se pelas propriedades acústicas do som e da fisiologia da percepção humana. É claro que estruturas e padrões serão impregnados de conotações, ou seja, de significações. Mas a condição sine qua non para esse recobrimento conotativo é a existência de uma estrutura, uma “entidade autônoma de dependências internas” (Hjelmslev, 1991, p.115) própria do plano da expressão. Se uma criança de três anos martela notas ao piano, ela não está criando uma melodia, mas uma sequência caótica de notas musicais destituída de estrutura. E sem essa estrutura o que temos é uma massa amorfa inescrutável. 

 

  1. As coerções do plano da expressão musical

 

Consideremos por ora que as razões apresentadas sejam suficientes para justificar uma análise do plano da expressão que não passe previamente pelo crivo do percurso gerativo de sentido. Nesse caso, qual seria o aparato simbólico-conceitual adequado à sua descrição? A resposta a esta questão depende de considerações sobre a forma e a substância. Por um lado, dentro do paradigma estruturalista, toda metalinguagem deve submeter-se a certos princípios formais bem estabelecidos. O princípio do empirismo (não-contradição, exaustividade e simplicidade da descrição), o princípio da análise e a própria noção de imanência, são alguns dos norteadores epistemológicos conhecidos de todos nó

semioticistas. Nada temos a acrescentar a esse aspecto, uma vez que estes princípios aplicam-se universalmente a qualquer semiótica, em qualquer de seus planos. Por outro lado, a substância da expressão é determinante na maneira como será construída a metalinguagem. Dado que a substância do plano da expressão musical é o som – um fenômeno físico, portanto -, o método de transcrição deve dar conta não apenas das relações de dependência observadas nas formas musicais, ele deve dar conta também das variações na substância da expressão. Essas variações somente podem ser descritas com o recurso da matemática. 

É necessário fazer uma breve digressão para esclarecer e justificar esta última afirmação, que pode parecer extravagante à primeira vista. Vimos na introdução a este texto que a semiótica operou um ajuste de percurso de modo a dar conta das continuidades na anáĺise da geração de sentido nos textos. Fundamentalmente, tal ajuste teórico se deu pelo reconhecimento de um nível tensivo subjacente ao nível fundamental, e se refletiu na metalinguagem pela incorporação do gráfico tensivo em substituição ao quadrado semiótico, além de um renovado vocabulário técnico. A teoria tensiva de Zilberberg não apenas introduziu a quantificação na semiótica, ela fez da quantificação sua pedra angular. Os grandes avanços na pesquisa sobre a significação proporcionados por essa mudança de perspectiva fizeram da quantificação semiótica “a” ferramenta de análise do texto, sobretudo do texto poético. Existem razões para crer, no entanto, que esta não seja a ferramenta mais adequada para a análise do plano da expressão musical. 

Vejamos esse problema em detalhes. Como afirma Greimas, “a percepção é o lugar onde se situa a apreensão da significação” (Greimas, 1966, p.8). Tudo o que adentra nosso campo de presença, o “domínio espácio-temporal em que se exerce a percepção” (Fontanille e Zilberberg, 2001, p.123), é dotado de um grau de intensidade: a sensação térmica de um objeto, a altura de um tom musical, a velocidade de um acontecimento, enfim, toda e qualquer percepção é suscetível ao mais e ao menos. Todas são medidas por seu grau de intensidade, por essa razão são chamadas de grandezas intensivas

Uma característica crucial das grandezas intensivas e, por extensão, das nossas percepções, é a incomensurabilidade. Incomensurável é o que não tem medida comum com um outro termo. Duas percepções são incomensuráveis porque lhes falta um termo de comparação, um ponto de referência comum. Segundo Lalande,

 

“Intensidade é a característica daquilo que admite os estados de mais ou de menos, mas de tal forma que a diferença entre dois estados não seja, ela própria, um grau daquilo que é assim suscetível de aumento ou de diminuição: por exemplo, um sentimento de temor pode diminuir ou aumentar, mas a diferença entre um temor ligeiro e um temor mais forte não é um nível de temor que possa ser comparado aos outros, como a diferença entre dois comprimentos ou entre dois números é um comprimento ou um número que tem o seu lugar na escala de grandezas da mesma espécie.” (Lalande, 1996, p. 582).

 

Uma analogia visual, um tanto artificial, admitamos (ver Figura 1), nos ajudará a esclarecer este ponto.

 

Figura 1

 Fonte: elaboração própria

 

Se nos perguntarmos sobre o efeito de sentido produzido pelas linhas da figura acima, podemos afirmar, sem que necessitemos de qualquer meio de medida, que a é menor que b, que a é menor que c, que b é menor que c, etc. No intuito de precisar ainda mais nossa percepção, podemos também afirmar que a é muito menor que b, que a é muito menor que c, e assim por diante. Há continuidade entre a, b e c, ou seja, é possível transitar indefinidamente, por aumentos ou diminuições graduais, entre os pólos de uma categoria, sem solução de continuidade. Um dos méritos da semiótica tensiva de Claude Zilberberg consistiu em extrair todas as consequências desse modo de ser da nossa apreensão sensível, sistematizá-lo em dois grandes eixos, os “estados de alma” (o eixo da intensidade) e os “estados de coisas” (o eixo da extensidade) e, a partir desse movimento, deduzir uma gramática do sentido, capaz de abarcar um sem número de nuances do texto que não eram captáveis com os recursos da semiótica greimasiana, com sua triagem do descontínuo, do lógico, do que não admite gradação. Vejamos agora porque os valores do plano da expressão não podem ser mensurados desta maneira. 

 

Figura 2

 

Fonte: elaboração própria

 

Na figura 2 retornamos às mesmas linhas a, b e c, porém agora atribuindo arbitrariamente ao segmento a a condição de unidade de medida. Assim, não diremos simplesmente que b é maior que a, diremos que b é seis vezes maior que a, e que c é sete vezes maior que a, e assim por diante. As figuras 1 e 2 ilustram, ainda que de maneira enviesada, as relações entre grandezas intensivas, continuidade e incomensurabilidade, de um lado, e grandezas extensivas, descontinuidade e comensurabilidade, de outro.   Qualquer que seja o objeto de nossa percepção, interna ou externa, ele somente pode ser medido em termos de grandezas intensivas. O mundo fenomênico, base material do plano da expressão, ao contrário, faz-se inteligível por meio de grandezas extensivas. Graças a essa propriedade, diz Kant, a matemática é aplicável aos objetos da experiência, ao substrato que serve de plano da expressão das semióticas.

Em suma, a substância do conteúdo deixa-se traduzir em grandezas intensivas, contínuas e sujeitas à gradação, e apenas a elas. Não há como traduzir extensivamente a significação, ou seja, não há como matematizar o plano do conteúdo. A substância da expressão, por outro lado, sempre poderá ser traduzida em grandezas extensivas, ou seja, em números. Portanto, do ponto de vista metodológico, é crucial separar plano do conteúdo e plano da expressão, considerando as coerções específicas da substância de cada um desses planos, ainda que estes se sincretizem no texto pela semiose.

Tomemos, por exemplo, o andamento. Enquanto efeito de sentido (plano do conteúdo, portanto) o andamento é uma grandeza intensiva e, caso seja quantificada, o será com a metalinguagem da semiótica tensiva. Não há como quantificar matematicamente a velocidade de um acontecimento, obviamente. No entanto, na qualidade de fenômeno do plano da expressão, o andamento pode ser matematizado. Mais que isso, ele deve sê-lo porque pela matemática é possível descrevê-lo de modo não-contraditório, exaustivo e simples.

A propósito, a matematização do plano da expressão é prevista por Hjelmslev:

 

A priori não parece inimaginável que toda ciência que procurasse realizar os objetivos de que nos fizemos defensores em relação à linguística chegue, ao fim da dedução, a encontrar-se diante de uma situação final onde não se pode mais distinguir relacionamentos de causa e efeito. Só restará então a possibilidade única de um tratamento estatístico das variações, semelhante àquele que Eberhard Zwirner procurou estabelecer sistematicamente no que diz respeito à expressão fonética das línguas. A condição para que esta experiência seja levada a cabo é que o objeto deste tratamento “fonométrico” não seja uma classe de sons obtida indutivamente, mas sim uma variedade localizada do mais alto grau obtida dedutivamente.” (Hjelmslev, 1975, p. 87).