MELODIA

A grade estrutural foi pensada como um instrumento para a análise das balizas rítmico-harmônicas da melodia da canção popular, de modo a tornar visível a interação entre a rítmica melódica e a prosódia da língua. Trata-se de uma relação entre duas hierarquias, cada uma das quais construída com diferentes componentes e sujeitas a regras próprias. A fim de tornar visível o mecanismo desta interação, a grade estrutural deve extrair da melodia aquilo que, em princípio, constitui sua essência, o contorno melódico. De fato, o método de representação adotado aqui oculta deliberadamente o contorno melódico de modo a destacar a estrutura rítmica, harmônica e frásica a ele subjacentes.

No entanto, como mostram os estudos de Tatit (2002), é no contorno melódico que reside a informação tensiva de uma melodia. É manipulando as curvas melódicas da canção, fazendo com que seus contornos sejam mais ou menos reiterados, introduzindo saltos ou gradações, que o cancionista pode fazer transparecer a paixão, a dor, a euforia, enfim, os estados de alma que constituem os ingredientes básicos do sentido cancional. É também manipulando a curva melódica e simulando com ela as entoações, que o cancionista pode trazer para a canção o sentido de espontaneidade e naturalidade da fala cotidiana. Coerentemente, a teoria semiótica da canção desenvolveu um sistema de representação que dá atenção quase que exclusiva aos contornos melódicos, como se pode constatar no exemplo abaixo, extraído d’O Século da Canção (2004:186)

O principal propósito de tal sistema de representação da melodia é revelar as diferenças de altura (daí as linhas horizontais), e pouca ou nenhuma atenção é dada às relações verticais. Por conta disso, não é possível verificar o alinhamento de segmentos, o paralelismo ou a similaridade entre os motivos rítmicos, comparar sílabas acentuadas e não acentuadas, a presença de pausas ou síncopas e os pontos de apoio da harmonia. Tal perda de informação é compensada com a capacidade de representar numa única imagem grandes extensões da melodia, por vezes partes inteiras dela. Dado o postulado de que o sentido está na totalidade do texto e não em suas partes, quanto maior a extensão considerada, mais eficaz será a análise. Por outro lado, tal sistema tem ainda o mérito de tornar visíveis, quando necessário, detalhes como os saltos melódicos ou as curvas dos motivos, representando, desse modo, tanto as relações extensas quando as intensas.

A grade estrutural, por outro lado, privilegia as estruturas verticais. Ele oculta um dado (o contorno) para revelar outro (as balizas). É claro que uma coisa não é mais importante que outra. Na verdade, o cancionista usa todas as variáveis musicais de que dispõe para criar efeitos de sentido. Por essa razão, é necessário um sistema de reprsentação que seja capaz de integrar a informação estritamente melódica com a informação rítmico-harmônica, e de mostrar como estes dois componentes interagem na criação de efeitos de sentido.

A seguir será exposto brevemente a maneira pela qual parece possível avançar na solução desse problema. Para ilustrar o procedimento de análise, serão projetadas na grade estrutural não apenas um fragmento ou um enunciado, mas todas as partes da canção Garota de Ipanema, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes. Mostraremos como importar para a grade estrutural seus contornos melódicos, de modo a termos um sistema de representação que integre todas estas informações. A escolha de Garota de Ipanema tem basicamente duas motivações. Em primeiro lugar, ela nos permite utilizar extensivamente quase todos os conceitos e noções introduzidas até este momento, de modo a tornar claro o potencial aplicativo da teoria aqui esboçada. Em segundo lugar, essa canção já foi exaustivamente descrita (Tatit, L. 1997:154-159; Tatit, L. 2004:186-200; Dietrich, P. 2006; Dietrich, P. 2008:73-88; Monteiro, R. 1997:194-198), de modo que aqui poderemos mostrar o que nosso método acrescenta à análise semiótica clássica.

A melodia de Garota de Ipanema apresenta o esquema AABA, sendo que a ligação entre B a A ocorre por meio de uma ponte. Temos que dar conta, portanto, de três segmentos, A, B e ponte.

Parte A: degeminação e síncope

A frase de abertura de Garota de Ipanema pode ser considerada (i) seja como um enunciado de três células, (ii) seja como dois enunciados com duas células degeminadas, hipótese mais simples:

#042.01-02 (i)
Sílaba      O      lha que COI     sa mais LIN     da mais CHEI a  de  GRA     ça       é
            |   *   |   |   |   *   |   |   |   *   |   |   |   |   |   |   *   |   *   |         
Nota        N       N   N   N       N   N   N       N   N   N   N   N   N       N       N
Pulso       P               P               P               P               P       
Célula      C                               C                               C
Enunc                                                                       E
#042.01002 (ii)
Sílaba           O      lha que COI     sa  maisLIN     da
                LIN     da mais CHEI a  de  GRA     ça                            
                 |   *   |   |   |   |   |   |   |   |   |         
Nota             N       N   N   N   N   N   N   N   N   N
Pulso            P               P               P                     
Célula           C                               C                               
Enunc                                            E

Aqui já se mostra um dos ganhos da grade estrutural. Note-se o efeito da síncope em #042.01-02a. Não fosse esta, todo o segmento seria absolutamente regular e previsível #042.01-02b.

#042.01-02a
Sílaba    O      lha que COI     sa mais LIN     da mais CHEI a  de  GRA     ça
#042.01-02b
Sílaba    O      lha que COI     sa mais LIN     da mais CHEI     a  de  GRA     ça  
          |   *   |   |   |   *   |   |   |   *   |   |   |   |   |   |   |   |   |   *        
Nota      N       N   N   N       N   N   N       N   N   N   N   N   N   N   N   N

A síncope quebra a regularidade dos motivos rítmicos num ponto-chave da melodia. A primeira frase resulta da degeminação de dois enunciados elementares. Mas há também degeminação entre as frases propriamente ditas, como se vê na grade abaixo.

<042.01-05>
Sílaba     O      lha que COI     sa mais LIN     da mais CHEI a  de  GRA     ça   é
          GRA     ça   é   E      la  me   NI     na  que vem  e  que PA      ssa num
          PA      ssa num  DO     ce  ba  LAN     ço  ca  MI  nho do  MAR
           |   *   |   |   |   *   |   |   |   *   |   |   |   |   |   |   *   |   |  
Nota       N       N   N   N       N   N   N       N   N   N   N   N   N       N   N
Pulso      P               P               P               P               P       
Célula     C                               C                               C
Enunc                                                                      E

Desse modo, a parte A é composta de três frases melódicas degeminadas, cada uma delas composta por dois enunciados elementares degeminados. Suponhamos agora que cada linha de associação represente uma altura:

O procedimento permite a visualização das curvas da melodia sem dissociá-las das balizas rítmicas. Consequentemente, a similaridade entre os motivos é diretamente observável assim como qualquer nuance rítmica que quebre o padrão reiterativo. Também fica clara a relação entre as partes e o todo. A recorrência do material melódico é controlada pelas balizas que segmentam todo o trecho. De fato, a melodia da primeira parte de Garota de Ipanema não descreve uma simples curva descendente, mas compõe-se como que de diferentes camadas de material melódico, relacionados entre si pela isotopia rítmica. Temos aqui um exemplo didático de melodia temática. As quebras dos motivos rítmicos que constituem as principais marcas da presença da fala estão ausentes, ou seja, a forma melódica controla integralmente a parte A de Garota de Ipanema.

Parte B: Alongamentos vocálicos e desaceleração

Dizer que uma canção tem duas partes (ABA, AABA, etc) é dizer que são necessárias duas grades estruturais diferentes para representar cada uma delas. A ideia que está por trás do conceito de “parte” é, portanto, a de uma certa homogeneidade rítmica. Cada uma das partes de uma canção tende a ter um desenho rítmico particular que somente se torna evidente quando projetado na grade estrutural. Acabamos de ver um exemplo disso na primeira parte de Garota de Ipanema. A mesma homogeneidade rítmica ocorre na parte B:

B contrasta com a A em diferentes aspectos. Enquanto os recortes das consoantes dominam A, em B há domínio das vogais prolongadas. Tem-se aqui um esquema de enunciado muito comum em canções passionais como Eu e a brisa, Se eu te pudesse fazer entender, Linda Flor, Drão, etc.: a nota que incide sobre o núcleo da primeira célula tem duração sensivelmente maior que as demais, podendo ser ainda seguida de pausa. Esta informação, diga-se de passagem, somente torna-se visível através da grade estrutural. Outra informação importante revelada pela grade diz respeito ao andamento: o esquema da parte A é o de um acorde a cada dois pulsos, o esquema de B é de um acorde a cada quatro pulsos. É aí que reside o efeito de sentido de que o andamento desacelera em B com relação a A. Juntas estas propriedades parecem mais importantes que a dimensão vertical, uma vez que o intervalo entre as notas extremas nas partes A e B é o mesmo, nove semitons. Por fim, vê-se que a segmentação dos contornos de B é determinada pelas balizas rítmico-harmônicas. Aqui também a melodia obedece a uma padrão recorrente homogêneo.

Ponte: modulação

Garota de Ipanema não é uma simples canção em duas partes, A e B, mas uma canção de duas partes unidas por um ponte. Vejamos os detalhes das duas partes e a motivação para a ponte. A é construído com colcheias, B com semínimas em quiálteras (de onde o efeito de sentido de aceleração de A e desaceleração em B); A tem uma estrutura rítmica claramente diferenciada, apoiada num motivo de 4 notas, ao passo que B é ritmicamente menos diferenciado (Schoenberg, 1996:59) devido à nota longa que abre cada um de seus enunciados, a qual se seguem duas figuras em quiálteras; A é inteiramente construído sobre o tom de Fá maior, finalizando com uma variação da cadência II/V, enquanto B explora a modulação para tons distantes, como Sol bemol, Fá sustenido menor e Sol menor.

Por tudo isso Garota de Ipanema se afasta do padrão das canções populares. Jobim explora novos territórios na parte B que têm poucos laços com a parte A. A solução clássica para esse forte contraste consiste em criar uma ponte que, por conter um alto grau de indiferenciação, permite um retorno pouco acidentado de B a A.

A questão estrutural que envolve o contraste entre as partes de uma composição musical pode ser formulada da seguinte maneira: como manter a unidade e a coesão da peça assegurando, ao mesmo tempo, a variedade que lhe dá interesse? Como obter um equilíbrio entre informação e redundância, entre tensão e relaxamento? Se a composição é redundante, sem variação, o efeito é de monotonia; se, ao contrário, não há reiteração de partes em algum aspecto (rítmico, melódico, harmônico, timbrístico, cinemático) a composição tende a se desestruturar por falta de coesão interna.  É o que poderia ocorrer em Garota de Ipanema, uma vez que Tom Jobim imprime um caráter decididamente exploratório na parte B.

E claro que quanto mais indiferenciada a ponte, melhor ela desempenha o papel de elemento de ligação (caso contrário a ponte pode se tornar uma terceira parte da canção, um C). Em Garota de Ipanema a ponte apresenta as seguintes características típicas: (i) movimento melódico escalar, (ii) progressão harmônica direta com dominantes secundárias, e (iii) indiferenciação rítmica quase absoluta. Veja-se:

Tais características de Garota de Ipanema tornam-se mais claras quando a canção é projetada na grade estrutural. Portanto, à análise do contorno melódico deve se somar a análise da estrutura rítmica. É esta que dá sentido de coesão, equilíbrio e organicidade a uma peça musical. Sem estes atributos, uma melodia é apenas uma sucessão de tons de diferentes alturas. Se estas são as principais responsáveis pelos conteúdos emocionais que a melodia expressa, o sentido estrutural da melodia seguramente não pode ser considerado menos importante.

Para dar um outro exemplo da análise combinada de contorno melódico com a grade rítmico-harmônica, um breve comentário sobre Cajuína, de Caetano Veloso. Cajuína tem apenas uma parte, o que significa que pode ser inteiramente representada numa única grade.

#001.02-08
Sílaba       Pois quan do TU  me  des tja RO  sa pe  que  NI          na
               Vi kjes um HO  mem lin dwe QUE sja ca swa  SI          na
               Do me  ni NUIN fe  liz não SE  nos  i lu   MI          na
              Tam pou co  TUR va sja  lá  GRI ma  no des  TI          na
               A  pe  nas  A  ma  té  ria VI  de  ra tão  FI          na
              je  ra  mos  O lhar mo  nos  IN tac ta  re  TI          na
               A  ca  ju   I  na cris ta  LI  nem te  re  SI          na
               |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |           |   
Nota           N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N           N
Pulso      P               P               P               P       
Célula                     C                               C
EnunMel                                                    E

A projeção do contorno melódico dos quatro primeiros versos mostra que as balizas rítmico-harmônicas dão apoio aos motivos melódicos, com inflexões descendentes na primeira célula e ascendentes na última. Não se trata de uma simples curva melódica, mas de uma curva melódica rítmica e harmonicamente construída. Veja-se:


Os quatro últimos versos mostram contornos melódicos mais diversificados: o quinto e oitavo versos têm perfil descedente e o sexto e o sétimo versos, perfil ascendente-descendente-ascendente. Ainda assim, observa-se claramente que tais curvas são sustentadas pelo mesmo arcabouço rítmico harmônico, uma vez que os núcleos das células constituem pontos de inflexão melódica: em todos os versos os pulsos atraem o acento tônico das palavras lexicais (o artigo a no sexto verso é a exceção) e, com isso, os acentos tonais, que na fala tendem a ser seguidos de queda na frequência. Cajuína é, de fato, um excelente exemplo didático dos papéis desempenhados pelos diferentes componentes melódicos: uma estrutura rítmica relativamente rígida dá liberdade ao cancionista para trabalhar sobre os contornos melódicos, construindo, como mostra a semiótica da canção, toda uma gama de efeitos de sentido.