Segundo Bolinger (1989) “intonation is speech melody”. Todavia, entoação da fala e melodia musical apresentam marcantes diferenças e são estas as responsáveis pela distinção entre palavra falada e palavra cantada. A entoação será tomada aqui pelo ponto de vista fonológico (PierreHumbert, 1988; Ladd, 1996), o que não quer dizer que um enfoque fonético não possa revelar importantes aspectos do problema aqui tratado.
O primeiro aspecto da distinção entre entoação e melodia diz respeito à relação entre sílaba e tom. Na entoação da fala, uma sílaba pode ser associada a mais de um tom e este pode ser associado a mais de uma sílaba. Na melodia cantada, ao contrário, a relação entre tom e sílaba é sempre biunívoca. Em segundo lugar, a entoação é um conjunto limitado de eventos tonais que são encadeados um após o outro moldando-se ao conteúdo semântico, à estrutura sintática e à condição pragmática da enunciação. A gramática entoacional estrutura-se em torno de apenas dois tons, alto (H) e baixo (L), cuja combinatória dá origem a um número limitado de acentos tonais e de tons de fronteira (Pierrehumbert, 1988:22). Em razão dessa limitação – limitação essa essencial para o bom funcionamento da entoação enquanto sistema paralinguístico – a relação entre tom e sílaba pode ser de um para um, de um para muitos ou de muitos para um. Segundo os princípios formulados por Goldsmith (1979: 27), (i) todas as vogais estão associadas a ao menos um tom e (ii) todos os tons estão associados a ao menos uma vogal. É claro que a associação entre um tom e uma vogal é apenas um caso particular decorrente de (i) e (ii). Assim:
Palavra Falada Palavra Cantada σ σ σ σ σ / \ ou \ / ou | | n n n n n
Limitação Estrutural.
Classe fechada.
Ausência de hierarquia.
Suponha-se uma interlocução na qual é apresentada a seguinte informação: “O João vai a São Paulo amanhã só pra comprar uma camisa do Ronaldinho”. O interlocutor, surpreso, pode manifestar sua reação à informação por meio de diversas frases, por exemplo, “O João?”, “O João vai a São Paulo amanhã?”, “O João vai a São Paulo amanhã só pra comprar uma camisa do Ronaldinho?”, etc. Embora cada uma destas frases contenha um número diferente de sílabas e de palavras, todas apresentam um perfil entoacional similar, aquele que permite identificar a expressão de surpresa do interlocutor. Ou seja, do ponto de vista da relação tom-sílaba,a entoação se caracteriza por ser uma cadeia definida de tons associada a uma cadeia indefinida de sílabas. A elasticidade da entoação faz dela uma espécie de “melodia” moldável a enunciados de diferentes extensões. Daí a relação entre tom e sílaba poder ser de um para muitos, de muitos para um, ou de um para um.
Além disso, não são apenas as três frases mencionadas que portam a mesma entoação, mas um número indefinido delas, uma vez que a entoação associada ao conteúdo “surpresa” pode recobrir um sem número de manifestações linguísticas. Empregamos os mesmos morfemas entoacionais recorrentemente toda vez que expressamos os mesmos conteúdos. É na qualidade de morfemas entoacionais, portanto, que as entoações constituem uma classe fechada. Elas fazem parte de inventários relativamente estáveis da língua e esta é a razão pela qual não criamos a cada ato da fala novas entoações, mas apenas as adaptamos a novas cadeias de sílabas e palavras. Em suma, a entoação não é produtiva. Como mostra Pierrehumbert, na entoação temos uma gramática de estados finitos, de modo que os morfemas entoacionais apenas se sucedem linermente uns aos outros sem constituir hierarquias. Ao contrário da entoação, a melodia é uma classe aberta e apresenta uma estrutura complexa, hierárquica e recursiva. Como discutiremos em detalhe mais adiante, as notas de uma melodia não constituem um sequência linear, mas são estruturadas em grupos hierarquicamente organizados segundo parâmetros rítmicos, harmônicos e semióticos. Por essa razão, a produtividade da palavra cantada é ilimitada. Sempre poderemos criar novas melodias e a elas associar textos, desde que respeitada a gramática da palavra cantada. Evidentemente, se considerada em sua realização fonética, a entoação da fala expressiva pode ser muito mais rica que a melodia musical. No entanto, o que está sendo comparado aqui não são as realizações fonéticas da cadeia falada e da cadeia melódica, mas as formas que lhes são subjacentes.