Introdução

INTRODUÇÃO

A constituição de um domínio científico pressupõe a clara delimitação de um objeto teórico. Esse objeto não nos é dado de antemão, mas criado por uma triagem por meio da qual o sujeito epistêmico se conjunta ao objeto e, simultaneamente, se disjunta do abjeto. É com essa nuance tímica que preferimos reler a máxima saussuriana, segundo a qual “…é o ponto de vista que cria o objeto.” (Saussure, 2006, p.15), enfatizando que o gesto epistemológico crucial na constituição de um domínio científico nada tem de inocente.

Para dar vida ao objeto de uma ciência é preciso antes de tudo nomeá-lo, forjar uma metalinguagem que lhe seja especificamente dedicada. Essa é constituída, via de regra, por um corpo de conceitos, um método de transcrição e um sistema de notação próprios. É exclusivamente por meio desse aparato simbólico-conceitual que se define o que é pertinente (o domínio do objeto) e o que não o é (o domínio do abjeto). Uma vez estabelecida a metalinguagem, algo pode ser dito do objeto (pois temos as palavras), mas nada pode ser dito do abjeto (pois nos faltam as palavras).

No domínio da fonologia, por exemplo, noções como fonema, alofone, par mínimo, oposição participativa, etc., assim como a notação a elas associada, dão voz à forma da expressão linguística (o objeto) mas silenciam a substância da expressão linguística (o abjeto). Transcrever “corta” e “mesmo” como /kɔɾtɐ/ e /meSmʊ/ tem um efeito residual não negligenciável de apagar as muitas variantes e pronúncias possíveis dessas palavras, uma vez que não dispomos dos símbolos necessários para expressá-las. Tudo ocorre como se essas pronúncias não existissem. Portanto, o ato de dotar a ciência de um aparato simbólico-conceitual cumpre um papel que vai muito além de “representar” seu objeto. Trata-se de um método sistemático de selecionar não apenas o que vemos, mas, sobretudo, o que não pode ser visto.  Resta ao abjeto, que caprichosamente insiste em se manifestar, ser tratado com um jargão feito sob medida para escamoteá-lo.

Posto isto, podemos introduzir o problema que nos traz aqui. Tomando a semiótica greimasiana em seu conjunto, e mesmo em seus múltiplos desdobramentos, podemos afirmar, sem receio de errar, que seu abjeto por excelência é o plano da expressão. Na triagem fundadora da semiótica greimasiana, “as estruturas textuais estão fora do percurso gerativo do sentido, e o exame do plano da expressão não faz parte das [suas] preocupações…” (Barros, 2005, p.76). Coerentemente, inexiste na semiótica francesa uma terminologia técnica dedicada ao plano da expressão.  Sabemos que já a partir dos anos 70 (referências) foram realizadas muitas e importantes pesquisas sobre a significação em domínios nos quais o plano da expressão desempenha um papel bem mais relevante do que aquele desempenhado na linguagem verbal, como a semiótica plástica, musical, semiótica da canção, cinema, dança, etc. Em todos esses domínios o plano da expressão recebe uma atenção especial, evidentemente. Porém essa atenção se dá sempre e necessariamente pelo viés da significação. Mais que isso, a significação deve estar circunscrita aos limites do percurso gerativo de sentido, seja este tomado na versão original proposta por Greimas, seja na sua expansão proposta por Zilberberg. Na ausência desse fato de significação, a expressão é tomada como um simples veículo do plano do conteúdo e, nesse caso, não merece atenção. O plano da expressão é, simplesmente, não-pertinente. 

O presente livro foi escrito embalado pela convicção de que é possível e mesmo necessário fazer do plano da expressão da palavra cantada

A primeira é de ordem teórica. Uma das características definidoras de uma semiótica é a não-conformidade entre seus planos. Dessa não-conformidade decorre a exigência de que tenhamos metalinguagens específicas para cada um deles e, consequentemente, que os dois planos sejam analisados separadamente um do outro. Assim, 

 

“…desde o momento em que, num determinado estádio da análise desse objeto complexo, uma ausência de conformidade se denuncia, o analista deve reconhecer a existência de duas hierarquias diferentes e, em consequência, procurar esgotar a análise completa em duas análises separadas. É assim que, se o objeto de análise é uma semiótica,….torna-se necessário distinguir os dois planos e analisá-los separadamente, a partir do momento em que, na análise do conjunto, eles revelem entre si uma diferença de estrutura…” (Hjelmslev, 1991, p. 54) 

 

Esta diretriz metodológica é fundamental. É ela que autoriza Greimas a propor a teoria semiótica do discurso, cujo objeto está integralmente circunscrito ao plano do conteúdo. A análise deste, portanto, independe da análise do plano da expressão. Dado que os planos são apenas entidades formais, o que é válido para um, é válido para o outro. Em suma, a considerarmos o argumento hjelmsleviano, não há como fugir de uma análise independente do plano da expressão, realizada com metalinguagem própria.   

A segunda razão é de ordem empírica. As diferenças entre as linguagens não diz respeito apenas à materialidade da expressão (as ordens sensoriais visual, auditiva, tátil, etc), mas também ao grau de complexidade apresentado pelas estruturas que compõem o plano da expressão de cada uma delas. Sob esse aspecto, as linguagens verbal e musical ocupam posições diametralmente opostas.  Na primeira, o plano da expressão é quase transparente, apresenta estruturas pouco rígidas, basicamente restritas aos seus elementos terminais. Embora as sílabas (cadeia segmental) e os acentos (cadeia suprasegmental) da cadeia da fala sejam fortemente estruturados, a liberdade de combinação é praticamente ilimitada quando ascendemos na hierarquia aos elementos mais extensos. Essa maleabilidade constitutiva do plano da expressão verbal é necessária para que qualquer conteúdo possa ser expresso.  O papel do plano da expressão verbal não consiste apenas em veicular a significação, mas em veicular qualquer significação possível ou imaginável, e, por isso, sua estrutura não pode ser um obstáculo à construção da significação. Ao definir a língua como uma “paradigmática cujos paradigmas se manifestam por todos os sentidos” (Hjelmslev, 1975, p.115), ou seja, como uma semiótica capaz de traduzir quaisquer outras semióticas, Hjelmslev se pergunta da razão de ser dessa tradutibilidade ilimitada das línguas naturais, e avança a hipótese de que “a razão disso é a possibilidade ilimitada de formação de signos e as regras bastante livres que regem a formação de unidades de grande extensão” (Hjelmslev, 1975, p.115).

Não se pode comparar essa tênue estrutura da cadeia da fala com a complexidade do plano da expressão musical. Incapaz de denotar qualquer sentido que seja, a música depende visceralmente de uma forte estruturação para, simplesmente, não perecer. A estrutura é a razão de ser da música. São por razões de estrutura, qualquer que seja esta (rítmica, harmônica, melódica, timbrística, etc) que um motivo musical ganha sobrevida e não desaparece do nosso horizonte perceptivo, como ocorre com aquela palavra que acabamos de pronunciar.  Padrões (ou seja, estruturas recorrentes) harmônicos e timbrísticos explicam-se pelas propriedades acústicas do som e da fisiologia da percepção humana. É claro que estruturas e padrões serão impregnados de conotações, ou seja, de significações. Mas a condição sine qua non para esse recobrimento conotativo é a existência de uma estrutura, uma “entidade autônoma de dependências internas” (Hjelmslev, 1991, p.115) própria do plano da expressão. Se uma criança de três anos martela notas ao piano, ela não está criando uma melodia, mas uma sequência caótica de notas musicais destituída de estrutura. E sem essa estrutura o que temos é uma massa amorfa inescrutável. 

 

  1. As coerções do plano da expressão musical

 

Consideremos por ora que as razões apresentadas sejam suficientes para justificar uma análise do plano da expressão que não passe previamente pelo crivo do percurso gerativo de sentido. Nesse caso, qual seria o aparato simbólico-conceitual adequado à sua descrição? A resposta a esta questão depende de considerações sobre a forma e a substância. Por um lado, dentro do paradigma estruturalista, toda metalinguagem deve submeter-se a certos princípios formais bem estabelecidos. O princípio do empirismo (não-contradição, exaustividade e simplicidade da descrição), o princípio da análise e a própria noção de imanência, são alguns dos norteadores epistemológicos conhecidos de todos nó semioticistas. Nada temos a acrescentar a esse aspecto, uma vez que estes princípios aplicam-se universalmente a qualquer semiótica, em qualquer de seus planos. Por outro lado, a substância da expressão é determinante na maneira como será construída a metalinguagem. Dado que a substância do plano da expressão musical é o som – um fenômeno físico, portanto -, o método de transcrição deve dar conta não apenas das relações de dependência observadas nas formas musicais, ele deve dar conta também das variações na substância da expressão. Essas variações somente podem ser descritas com o recurso da matemática. 

COMPATIBILIDADE E INCOMPATIBILIDADE ENTRE TEXTO E MELODIA

A produção de sentido da palavra cantada é determinada pelos diferentes modos de interação entre texto e melodia. Luiz Tatit, que além de pioneiro nos estudos sobre a produção de sentido na canção é também o formulador da teoria mais consistente sobre o tema, usa frequentemente o termo “compatibilidade” para descrever a interação entre texto e melodia. Segundo Tatit, “Produzir canções significa produzir compatibilidades entre textos e melodias – aos quais se agregam recursos musicais de toda ordem – de modo a configurar um sentido coeso.” (Tatit, 1995:190). Ou seja, texto e melodia produzem efeitos de sentido – plano do conteúdo, portanto – que concorrem para a significação global da canção. A tese da compatibilidade tem sido corroborada pela análise de inúmeras canções e firmou-se como o núcleo em torno do qual a produção de sentido na canção popular pode ser pensada. O ponto crucial aqui é que essa tese não apenas permite-nos compreender a produção de sentido na palavra cantada, ela o faz dentro dos limites estabelecidos para o percurso gerativo de sentido, tal como proposto inicialmente por Greimas e expandido posteriormente por Zilberberg.

A despeito da robustez da tese da compatibilidade entre texto e melodia, quando nos detemos sobre o plano da expressão da palavra cantada o quadro parece ser outro. Constatamos aqui uma série de incompatibilidades entre estruturas musicais e estruturas linguísticas. Tais incompatibilidades não ocorrem apenas entre acentos e durações, resultando num conflito rítmico entre palavra e música em que a distribuição de proeminências na fala pode não ter relação alguma com a distribuição de proeminências musicais. Elas ocorrem também no domínio da altura, em que fica patente que a melodia musical e a entoação da fala obedecem a gramáticas distintas.

Em princípio, nada há de extraordinário no fato da palavra cantada produzir compatibilidades entre os planos do conteúdo musical e verbal e incompatibilidades entre os planos da expressão correspondentes. Como salienta Hjelmslev, plano da expressão e plano do conteúdo estruturam-se de forma completamente autônoma (Hjelmslev, 1975:117). O fato que nos parece relevante é que essas incompatibilidades da expressão parecem produzir significações “transversais”, que se dão fora do âmbito do percurso gerativo de sentido.

De fato, ao circunscrever a produção da significação ao percurso gerativo, impomos à nossa visada uma formidável triagem que exclui o plano da expressão. Ocorre que, a rigor, não há plano da expressão semioticamente inerte. O que há é que a produção de sentido se dá além das fronteiras do percurso gerativo. Podemos parafrasear Zilberberg aqui dizendo a casa do sentido é ampla o suficiente para abrigar o aquém e o além do percurso gerativo. Não há como descrevermos a bossa nova – um estilo – sem descrevermos uma certa configuração de elementos do plano da expressão musical. Ou seja, o que chamamos de “bossa nova” é um efeito de sentido dessa configuração.

Ademais, não faz parte do escopo da semiótica greimasiana tratar de questões do plano da expressão, sobretudo em casos em que, à primeira vista, eventuais incompatibilidades entre a expressão verbal e musical não se espraiam para o plano conteúdo, não produzem sentido.

Chegamos ao ponto central do nosso argumento.

Ocorre que, quando observadas atentamente, verificamos que essas incompatibilidades da expressão não são semioticamente inertes. De fato, há razões para crer que uma maior ou menor compatibilidade entre expressão verbal e musical produz significações “transversais”, significações essas que se situam fora do percurso gerativo de sentido. Para ficarmos apenas num exemplo, aquilo que Tatit chama de “figurativização” pode ser considerado, sob esse ponto de vista, como o efeito de sentido de uma incompatibilidade entre expressão verbal e musical que pode ser precisamente determinada. Ou seja, o sentido de figurativização é construído por uma incompatibilidade entre a expressão verbal e musical.

A incompatibilidade entre o ritmo da fala e o ritmo da melodia é um bom exemplo desse tipo de problema, e nos ajudará a mostrar que ele não tem recebido a devida a atenção. O inventário rítmico das palavras do português constitui-se de uma minoria de proparoxítonas e oxítonas, e uma maioria de paroxítonas, formando pés binários, com a sílaba proeminente à esquerda (troqueus), a partir da borda direita da palavra. Por exemplo:

Pé     (x   .)      (x   .   x   .)      (.   x   .)      (.   x)
Sílaba (x) (x)      (x) (x) (x) (x)      (x) (x) (x)      (x) (x)
       FA  to       CA  sa  MEN to       fe  LI  no       ma  NHÃ

Com raras exceções, previstas pela gramática, as palavras da língua têm uma distribuição rígida do acento primário e secundário. Ninguém fala fa.TO, ca.SA.men.to ou fe.li.NO. E Ma.nha é possível porque faz parte do léxico, sendo exemplo dos raros casos em que o acento tem função distintiva. À primeira vista, a melodia parece também obedecer um rígido esquema rítmico virtual (o pulso binário, ternário, etc.). No entanto, a possibilidade ilimitada de distribuição de notas em posições mais ou menos proeminentes (posições fortes e fracas) faz com que qualquer melodia seja moldável conforme o desejo do músico. Em outras palavras, o melodista pode distribuir livremente as notas em posições fortes ou fracas, ao passo que o letrista não tem tal liberdade e deve distribuir as sílabas em posições fortes ou fracas segundo a gramática da língua. Essa diferença constitutiva entre ritmo da fala e ritmo da música produz, frequentemente, incompatibilidades entre texto e melodia. Via de regra, o ritmo da melodia impõe-se ao ritmo da fala, como pode ser observado nos versos de Tempo de estio, de Caetano Veloso.

515.01-02 (falado)
Pé               (x   .) (.   x)                 (x   .) (.   x)
Sílaba           (x) (x) (x) (x)                 (x) (x) (x) (x)
                 QUE ro  co  MER                 QUE ro  ma  MAR

<515.01-02> (cantado)
                 que RO  co  MER                 que RO  ma  MAR
              *   |   |   |   |   *   *   *   *   |   |   |   | 
Nota              N   N   N   N                   N   N   N   N
Pulso         P       P       P       P       P       P       P

O fato de que haja tal incompatibilidade entre expressão verbal e expressão melódica não parece afetar os efeitos de sentido da canção e talvez por essa razão não tenha recebido a atenção dos semioticistas. Ajudam a entender a tipologia das canções. Não foram percebidos porque não houve a preocupação com a transcrição e notação do PE. É necessário desenvolver estas ferramentas.

 

TRANSCRIÇÃO

É no capítulo “Objeto da linguística”, do Curso de Linguística Geral, que Saussure, indagando-se sobre a natureza do objeto teórico da linguística, formula o famoso aforismo segundo o qual, “…é o ponto de vista que cria o objeto”. Isso quer dizer que a partir de um mesmo objeto empírico, diferentes objetos teóricos podem ser criados, a depender unicamente do ponto de vista adotado. O objeto empírico da investigação que ora iniciamos, ou seja, o dado bruto de origem submetido à observação, é a canção popular brasileira. O ponto de vista a partir do qual esse objeto empírico é observado é o da significação. A projeção desse ponto de vista sobre o objeto empírico canção popular resulta num objeto teórico, a palavra cantada

O objeto teórico é, por definição, uma redução do objeto empírico. Afinal, todo ponto de vista é sempre uma mirada, uma delimitação, ou como preferimos, uma triagem a que o objeto empírico é submetido. Por isso, a palavra cantada é

Para que a pergunta sobre o sentido possa ser respondida com objetividade é necessário que selecionemos no objeto empírico apenas aqueles elementos pertinentes para a construção do sentido. Em outras palavras, submetemos o objeto a uma triagem que separará aquilo que é pertinente daquilo que não é.  É esse processo de triagem que denominamos transcrição.

Toda transcrição é seletiva. Fundada numa metalinguagem especificamente desenvolvida para tal, constituída de um corpo de conceitos e de um sistema de notação próprios, a transcrição extrai (ou deriva) do objeto empírico os elementos pertinentes para a construção do sentido e, assim, cria um objeto teórico. Assim a transcrição nos fornece a matéria prima da análise. A análise da palavra cantada requer uma metalinguagem que lhe seja especificamente dedicada, um sistema de conceitos que nos permita construir hipóteses sobre a maneira pela qual a materialidade da palavra e da música, sincretizadas na canção, criam efeitos de significação próprios, efeitos que ultrapassam aqueles criados pela palavra e pela música isoladamente.

Esta é constituída, via de regra, por um corpo de conceitos, um método de transcrição e um sistema de notação próprios. É exclusivamente por meio desse aparato simbólico-conceitual que se define o que é pertinente (o domínio do objeto) e o que não o é (o domínio do abjeto). E uma vez estabelecida a metalinguagem, algo pode ser dito do objeto (pois temos as palavras), mas nada pode ser dito do abjeto (pois nos faltam as palavras).

Essa delimitação é necessária para que possamos delinear a problematização que pode ser feita sobre o objeto, e, a partir desta,  a diretriz metodológica mais apropriada. Assim, a delimitação do objeto teórico determina a metodologia de análise Ainda que provisória (uma vez que funda-se numa hipótese a ser desenvolvida adiante), a definição que propomos procura ser fiel a esse propósito:

Palavra cantada é uma variante da palavra falada na qual os supressegmentos são compostos por duas cadeias, a cadeia prosódica e a cadeia melódica.

A partir dessa definição fica claro que investigar a palavra cantada consiste em descrever a constituição de três cadeias, silábica, prosódica e melódica, e a interação entre estas. Como veremos adiante, a  forma final da cadeia silábica é determinada, em última instância, pela mútua interferência que prosódia e melodia exercem entre si.

Esse interferência decorre da natureza comum compartilhada por ambas. Prosódia e melodia nada mais são que diferentes maneiras de estruturar o mesmo material sonoro. Sons com altura, duração e intensidade constituem a matéria prima de ambas Ou seja, na palavra cantada, a prosódia (o tom, o acento e a entoação) é permutada pela melodia (a nota, o pulso rítmico, e o contorno melódico. Nada se perde, nada se ganha, apenas que muda o modo como certos elementos comuns à fala e ao canto – os traços altura, duração e intensidade – se organizam em unidades hierarquicamente superiores, e que são específicas da prosódia (fala) e da melodia (canto) enquanto sistemas distintos.

      1. Numa primeira aproximação os elementos pertinentes dividem-se em duas classes:
        • (i) constituintes melódicos (nota, pulso rítmico, célula harmônica, cadência) e
        • (ii) constituintes prosódicos (sílaba, pé, frase fonológica, frase entoacional);

Tome-se, por exemplo, apenas o traço altura. Na fala, a altura é a categoria definidora da entoação, que, no português brasileiro, pode ser descrita como um sistema de dois tons, alto (H) e baixo (L), a partir dos quais formam-se eventos tonais (monotonais ou bitonais), os quais podem constituir tons de fronteira (L%, H%), acentos tonais (L*, H*) ou tons de constituinte (L-, H-). Na música, diferentemente, a altura é a categoria definidora do contorno melódico, e organiza-se num sistema de doze tons (escala cromática), os quais estruturam-se em células melódicas, que por sua vez constituem frases melódicas. É claro que a duração e a intensidade são também objeto de uma estruturação semelhante e, juntamente com a entoação, compõem o que conhecemos como prosódia (fala) e melodia (música).

Desse modo, a hipótese de que a palavra cantada seja uma variante da palavra falada justifica-se porque qualquer cadeia segmental pode ser recoberta por uma cadeia suprassegmental prosódica (quando então torna-se fala) ou melódica (quando então torna-se canto) ou, ainda, por uma sobreposição de ambas, fato muito comum observado na música popular brasileira. Essa hipótese parece congruente com o fato de que não há palavra cantada na qual a prosódia não seja afetada pela melodia ou em que a melodia não seja modificada pela prosódia. Daí a pertinência da questão de saber se essa mútua interferência está ou não sujeita a uma gramática. Numa análise preliminar de cerca de uma centena de canções populares, verificamos que a palavra cantada obedece a certas condições de boa formação que constituem o que poderíamos chamar de uma quase-gramática, um conjunto de regras para o alinhamento ou associação entre constituintes prosódicos e unidades melódicas. Essas análises indicam queum sistema subjacente à interação entre proeminências linguísticas (o acento lexical, tonal e entoacional) e as prominências melódicas (a marcação do pulso, o núcleo das células rítmicas e o núcleo das células harmônicas).

Pela natureza de seu objeto uma Gramática da Palavra Cantada situa-se numa região de fronteira entre a prosódia, a musicologia gerativa e a semiótica. Toma como referência da primeira a teoria dos domínios prosódicos da fonologia prosódica de Nespor&Vogel (1986) e a fonologia entoacional de Ladd (1996); da segunda, retém certas assunções sobre as estruturas musicais hierárquicas (Schenker, 1979 e Lerdahl & Jackendoff, 1983) e sobre a chamada phrase structure analysis (Schoenberg, 1996); por fim, linguística e musicologia são integradas à semiótica (Tatit, 1996), uma vez que o objetivo último da investigação é compreender como o sentido melódico é engendrado tomando por base de análise a canção popular.

“Por mais parcial e parcelar que seja um objeto de pesquisa, ele só pode ser definido e construído em função de uma problemática teórica que permita submeter a uma interrogação sistemática os aspectos da realidade colocados em relação entre si pela questão que lhes é formulada” (Bourdieu, A construção do objeto, 1999, p. 48).