NOTAÇÃO
Grade estrutural
A análise do corpus é feita com o auxílio de três ferramentas, a grade estrutural, a matriz melódica e o script MusicXML. Na grade estrutural, texto e melodia são projetados de modo a tornar visíveis as relações entre a estrutura prosódica do texto e a estrutura rítmico-harmônica da melodia. Os constituintes prosódicos pertinentes para a análise da palavra cantada, sílaba (σ), frase fonológica (PhP) e frase entoacional (IP) ocupam a parte superior da grade; as unidades melódicas, nota (N), pulso (P), célula melódica (Cm) e frase melódica (Fm), são dispostas na parte inferior da grade. Sílabas e notas são ligadas por linhas de associação ( | ) e pausas ou prolongamentos de notas são representadas pelo símbolo (ø). Em princípio, toda melodia cantada pode ser projetada numa grade estrutural. A figura abaixo apresenta a grade do primeiro verso de Felicidade (Lupicínio Rodrigues):
033.01
IP [ * ]
PhP [ * ][ * ][ * ]
σ fe li ci DA de FOI sjem BO re
ø | | | | ø ø | | ø ø | | |
N N N N N N N N N N
P * * * *
Cm * *
Fm *
A principal vantagem da representação em grade é permitir a visualização simultânea de duas estruturas, textual e melódica, algo imperativo na análise da palavra cantada, possibilitando assim a inspeção direta de fenômenos prosódicos e rítmico-melódicos e de sua mútua interferência.
São adotadas as seguintes convenções quanto ao uso de símbolos numa grade estrutural:
1. Referência ao corpus: é feita por uma sequência numérica em que os primeiros três algarismos indicam a canção e os dois últimos o verso correspondente. Por exemplo, 563.14 corresponde ao 14º verso da 563ª canção do corpus, Drão, de Gilberto Gil:
563.14
Não pen se na se pa ra ção
2. Dígrafos: Sempre que possível é empregada a representação ortográfica na transcrição das sílabas. Quando necessário, dígrafos de sílabas com mais de três caracteres são representados conforme a seguinte convenção:
qu > k -- que ro > ke ro gu > g -- gui a > gi a ch > ʃ -- chu va > ʃu va nh > ɲ -- ni nho > ni ɲo lh > ʎ -- o lho > o ʎo rr > ʁ -- co rro > co ʁo ss > s -- ma ssa > ma sa sc > s -- nas ce > na se sç > s -- nas ça > na sa
3. Ditongos: são representados pelas semiconsoantes j e w:
152.01 se po ra ca swa mor mja ga ʁar
5. Sílaba (σ): a sílaba é a unidade elementar da hierarquia prosódica, e na palavra cantada está necessariamente alinhada a uma nota (N).
6. Pé (Σ): Constituinte que se situa imediatamente acima da sílaba na hierarquia prosódica. Compreende uma e apenas uma sílaba forte e pode ter de nenhuma a várias sílabas fracas. Em português, o pé é binário, construído da esquerda para a direita, com a sílaba proeminente à esquerda (um troqueu). Dado o princípio do Pareamento Rítmico (cf. cap. 2), apenas em casos excepcionais é necessária a referência ao pé prosódico (Σ) na análise da palavra cantada. Nesses casos, o pé será representado numa grade métrica, conforme o modelo de Halle e Vergnaud (1987)
579.09 Σ ( . * .)( * . ) σ pro FUN di DA de
7. Proeminência relativa: Sílabas proeminentes em decorrência do alinhamento com os pulsos são representadas por caracteres em caixa alta.
554.0 σ tra TEI da SU a A sa
8. Palavra fonológica (ω): Constituinte da hierarquia prosódica que domina o pé e que corresponde ao nó terminal de uma árvore sintática. A palavra fonológica parece ser musicalmente transparente, não sendo afetada pela interação entre texto e melodia.
9. Limites da frase fonológica e da frase entoacional: Os limites da frase fonológica (PhP) e da frase entoacional (IP) são representados com colchetes, sobrepostos à camada silábica. Os núcleos desses constituintes são representados com um asterisco:
539.10 IP [ * ] PhP [ * ][ * ][ * ] σ Eu TJA nun CI o NOS si NOS das CA te DRAIS
10. Nota (N): nota é a unidade elementar da hierarquia melódica. É necessariamente alinhada a uma única sílaba.
11. Slot métrico preenchido (|): os elementos que compõem a cadeia métrica da palavra cantada (slots) são virtuais, ou seja, podem ou não ser preenchidos por um par σ/N. O símbolo | representa um slot preenchido. Por exemplo:
521.10 σ Eu tja nun CI o nos si NOS das ca te DRAIS | | | | | | | | | | | | N N N N N N N N N N N N N
12. Slot métrico não preenchido (ø): os elementos que compõem a cadeia rítmica na palavra cantada (slots) são virtuais, ou seja, podem ou não ser preenchidos por um par σ/N. O símbolo ø representa um slot não preenchido. Por exemplo:
033.01
σ fe li ci DA de FOI sjem BO re
ø | | | | ø ø | | ø ø | | |
N N N N N N N N N N
13. Apagamento silábico (σø): Processo de reestruturação da cadeia silábica em que uma sílaba é apagada para não violar o Princípio de Pareamento Métrico (cf cap. ?). São de interesse particular os casos de apagamento que vão de encontro à fonologia do português. Por exemplo:
541.07
σ TRA tei DA su aø A sa TRA tei DA su A sa
| | | | ø | | -> | | | | | |
N N N N N ø N N N N N N N N
14. Inserção silábica (øσ): Processo de reestruturação da cadeia silábica em que uma sílaba é inserida para não violar o Princípio de Pareamento Métrico (cf cap. ?). Por exemplo:
087.03
σ eu PER gun TEJ ø a DEUS do CÉU aj eu PER gun TE øEJ a DEUS do CÉU aj
| | | | | | | | | | -> | | | | | | | | | |
N N N N N N N N N N N N N N N N N N N N N
15. Apagamento melódico (Nø): Processo de reestruturação da cadeia melódica em que uma nota é apagada para não violar o Princípio de Pareamento Métrico (cf cap. ?). Nesse caso.
434.02
σ Por kje ø kjew sou tão ca la do Por kje kjew sou tão ca la do
| | ø | | | | | | -> | | | | | | | |
N N Nø N N N N N N N N N N N N N N
16. Inserção melódica (øN): Processo de reestruturação da cadeia silábica em que uma sílaba é inserida para não violar o Princípio de Pareamento Métrico (cf cap. ?). Por exemplo:
500.02
σ que SÓ quan do CRU zaj pi RAN ga que SÓ quan do CRU zaj pi RAN ga
| | | | | | | | | -> | | | | | | | | |
N øN N N N N N N N N N N N N N N N N N
17. Pulso (P) : Unidade virtual da cadeia melódica. Os pulsos são representados abaixo da cadeia da notas e são alinhados a estas, aos seus prolongamentos ou às pausas. Sílabas alinhadas aos pulsos são sempre proeminentes e são sempre grafadas em caixa alta:
527.01
σ e XIS tir MOS a QUE se RA que SE des TI na
| | | | | | | | | | | | ø ø | ø
N N N N N N N N N N N N N N
P * * * * * * * *
18. Síncope (<σ): Deslocamento à esquerda de sílaba proeminente para um slot métrico não alinhado a um pulso.
050.01-02
σ Sam BA da mi nha TE rra dei xa GEN te <MO le
| | | | | | | | | | | | ø ø ø |
N N N N N N N N N N N N N
P * * * *
19. Célula melódica (C): Constituinte melódico cujo núcleo porta um pulso e uma única função harmônica
535.01 PhP [ * ] σ DOIS ir MÃOS | | | N N N N P * * Cm *
20. Frase melódica (F): Constituinte da hierarquia melódica delimitado por uma pausa e que compreende (i) duas ou mais células contíguas e (ii) uma predicação harmônica (cf cap ?).
545.01
IP [ * ]
PhP [ * ][ * ]
σ ci DA DE ma RA vi LHO SA
| | ø | ø ø | | | | ø | ø ø ø ø
N N N N N N N N N
P * * * * * * * *
Cm * *
Fm *
21. Desalinhamento acentual (!): Sejam S e s duas sílabas adjacentes, uma acentuada (S) e outra não acentuada (s). Ocorre desalinhamento acentual se (i) s for alinhada a um pulso P e (ii) S não for alinhada a um pulso (P)1
385.02
IP [ * ]
PhP [ * ][ * ]
σ vai !BO ta a !GUA pra FO ra
| | ø ø ø | | | | | ø | ø ø ø ø
N N N N N N N N N
P * * * * * * * *
Cm * *
Fm *
Matriz melódica
A grade estrutural foi concebida como um instrumento para a análise das balizas rítmico-harmônicas da melodia da canção popular, de modo a tornar visível a interação entre a rítmica melódica e a prosódia da língua. Trata-se de uma relação entre duas hierarquias, cada uma das quais construída com diferentes componentes e sujeitas a regras próprias. O método de representação em grade oculta deliberadamente o contorno melódico, de modo a destacar a estrutura rítmica, harmônica e frásica a ele subjacentes. Assim, a grade estrutural extrai da melodia aquilo que, em princípio, constitui sua essência, o contorno melódico.
No entanto, é no contorno melódico que reside a informação tensiva de uma melodia. É manipulando as curvas melódicas da canção, fazendo com que seus contornos sejam mais ou menos reiterados, introduzindo saltos ou gradações, que se criam efeitos de sentido, com a alegria, tristeza, a paixão, enfim, os estados de alma que constituem os ingredientes básicos do sentido na canção popular.
O método de representação do contorno melódico que adotaremos é derivado de uma linguagem de marcação desenvolvida para representação de notação musical (MusicXML). Trata-se de um script que extrai mecanicamente um conjunto de informações pertinentes para a análise da palavra cantada. A figura abaixo apresenta o contorno melódico do primeiro verso de Felicidade (Lupicínio Rodrigues), obtida por meio desse script:

Além de representar o contorno, o script MusicXML pode extrair as seguintes informações de uma partitura:
21. Compasso: 2/4, 4/4, etc.
22. Andamento (bpm): valor do andamento em (batidas por minuto)
23. Referência temporal: duração, em segundos, da menor unidade de tempo (semicolcheia).
24. Quantitativo de linhas: número de unidades de tempo do fragmento melódico.
25. Quantitativo de duração (ΔT): duração (em segundos) do fragmento melódico.
26. Quantitativo de notas |N|: número de notas do fragmento
27. Quantitativo de sílabas |σ|: número de sílabas do fragmento
28. Taxa de elocução (TE): número de sílabas por segundo
29. Quantitativo de pulsos (|P|): número de pulsos do fragmento
30. Quantitativo de sílabas com acento primário (|’σ|): número de sílabas com acento primário
31. Quantitativo de acentos deslocados (|,σ|): número de sílabas tônicas desprovidas de acento
32. Pareamento acento/pulso (|Nσ|: número de sílabas pareadas com notas
33. Maior valor de <N: nota mais alta da melodia
34. Menor valor de >N: nota mais baixa da melodia
35. Tessitura (T): diferença entre a nota mais baixa da melodia
36. Coeficiente fórico (f): razão entre a tessitura e a taxa de elocução
37. Quantitativo |H|: número de acordes do fragmento
38. Padrão H: cadeia de acordes do fragmento
- HAYES, B. (2002) ↩︎