Pareamento rítmico

PAREAMENTO RÍTMICO

RESUMO: Não é raro depararmo-nos com construções estranhas à prosódia do português brasileiro em meio aos versos de uma canção popular. Uma das formas mais recorrentes dessas construções consiste na atribuição anômala do acento à cadeia silábica.  Há casos em que o acento primário parece deslocar-se, à direita ou à esquerda, sem que se identifique ambiente linguístico justificável. É o que ocorre no primeiro verso de Cajuína, de Caetano Veloso, em que o acento primário de e.xis.TIR.mos desloca-se à direita (e.xis.TIR.mos > e.xis.tir.MOS); deslocamento semelhante ocorre no nono verso de Divina Comédia Humana, de Belchior, onde o acento primário de pro.fun.di.DA.de desloca-se à esquerda (pro.fun.di.DA.de > pro.fun.DI.da.de). Outra construção bastante frequente é a atribuição de acento a clíticos – despidos de acento por definição – como em Xica da Silva, de Jorge Ben Jor (XI.ca.da > XI.ca.DA), ou em Gabriela, de Tom Jobim (na.mi.nha.DOR > NA.mi.nha.DOR). Notável também é a realização de processos fonológicos em ambientes nos quais estes seriam bloqueados e, reciprocamente, em seu bloqueio em ambientes nos quais seria esperada a sua realização. Assim, no sexto verso de Morro Dois Irmãos, de Chico Buarque, a atribuição excepcional do acento (NOW.tra > now.TRA) deveria bloquear a ditongação, o que de fato não ocorre (now.TRAJ.xis.TEN.cja). Há casos ainda em que a qualidade das vogais se altera devido à atribuição excepcional do acento à sequência fonológica. Por exemplo, na canção infantil Atirei o pau no gato, o aparente deslocamento do acento (do.BE.rro > DO.be.RRO) provoca o alçamento da vogal média-baixa (bε > be) e o abaixamento da vogal posterior (rʊ > ro). O fator comum a todas essas construções parece ser a presença de uma anomalia rítmica que vai de encontro à prosódia da fala. A excepcionalidade dessas construções, assim como a relativa frequência com que ocorrem, constituem problemas relevantes que dizem respeito à fonologia do português brasileiro. No presente ensaio, investigamos a ocorrência desse fenômeno na canção popular brasileira, tendo como ponto de partida estudos de Lerdhal e Jackendoff (1983) Hayes e Kaun (1996), Halle e Lerdahl (1993), Halle (2005), Halle & Dell (2009),  XXXX (2012) e XXXX (2021). Argumentaremos que os dois componentes da palavra cantada, melódico e prosódico, são ambos estruturados como hierarquias de constituintes, e que a ausência de pareamento entre estes constituintes é a causa dos fenômenos acima mencionados. 

Palavras-chave: melodia; acento; palavra cantada

Abstract (150-180)

Key-words: melody; stress; sung melody; autosegmental phonology

 

1 Apresentação do problema

 

O presente ensaio discute a atribuição excepcional do acento que ocorre com certa frequência na palavra cantada em português brasileiro. Antes de adiantarmos nosso argumento é preciso justificar o emprego da expressão palavra cantada em detrimento de canto. Por palavra cantada entendemos uma variedade da fala na qual a cadeia silábica não é associada a uma cadeia de tons, mas a uma cadeia de notas musicais. Na terminologia da fonologia autossegmental, diríamos que enquanto a fala caracteriza-se pela associação entre um tier silábico e um tier tonológico, a palavra cantada se constitui pela associação entre um tier silábico e um tier melódico (Fig. 1). Portanto, ao empregar a expressão palavra cantada queremos enfatizar a pertinência linguística do objeto da nossa investigação, reservando o termo canto para referir ao uso do aparelho fonador para produzir música, independentemente de que esta seja ou não acompanhada da palavra. 

Figura 1

palavra falada palavra cantada
tier tonológico

|

tier silábico

tier melódico

|

tier silábico

 

Fonte: elaboração própria

 

Feita esta ressalva terminológica, entende-se porque a condição sine qua non para a análise da palavra cantada é a possibilidade de tratar estruturas musicais e fonológicas numa base conceitual comum. É crucial que tenhamos à disposição um conjunto de termos técnicos que nos permita referir às entidades da prosódia (sílaba, pé, palavra fonológica, etc.) e da melodia (nota, pulso, motivo, acorde, etc.), assim como às relações que essas entidades estabelecem entre si. As primeiras tentativas de estabelecer tal base conceitual  – ainda que motivadas por outros objetivos -, datam dos anos 70, quando linguistas e musicólogos (Ruwet, 1975; Nattiez, 1975; Molino, 1976) se propuseram a utilizar métodos linguísticos na análise musical. Ancoradas numa concepção de fonologia estritamente segmental e linear, herdada do estruturalismo clássico e perpetuada no modelo gerativo padrão do The Sound Patterns of English, essas iniciativas mostraram-se incapazes de descrever a natureza relacional da prosódia e da melodia. O problema começa a ser contornado com o advento das fonologias não-lineares. Estudos de fonología prosódica (Selkirk, 1984;  Nespor & Vogel, 1986), fonologia métrica (Liberman & Prince, 1975; Halle & Vergnaud, 1987) e fonologia autossegmental (Goldsmith, 1976) trouxeram uma nova compreensão sobre o funcionamento do significante linguístico e permitiram, entre outros avanços, um melhor entendimento do ritmo, abrindo caminho para a análise do ritmo na poesia (por exemplo, Hayes & Kaun, 1996), e, posteriormente, para a análise do ritmo na palavra cantada (por exemplo, Hayes & MacEachern, 1998).  Paralelamente a estes avanços da teoria fonológica, Lerdhal e Jackendoff apresentam em A Generative Theory of Tonal Music (1983) um conjunto de ferramentas teóricas que permitem uma aproximação conceitual entre música e linguagem.

Mas o primeiro tratamento da palavra cantada propriamente dita, a partir de uma abordagem  simultaneamente linguística e musicológica, encontra-se nos trabalhos de John Halle (1993, 2003). Halle concebe a palavra cantada como um objeto composto que combina dois objetos simples, texto e melodia. Dado que esses objetos têm estrutura própria e existem independentemente um do outro, como fala natural e melodia instrumental respectivamente, coloca-se de imediato o problema das condições de boa formação da palavra cantada (text setting problem), problema que foi formulado originalmente por Halle (2005:50) nos seguintes termos:

 

“Dada uma cadeia de sílabas S e uma melodia M, quais são as propriedades da alocação de S em M que a escuta considera um arranjo aceitável entre texto e melodia?”.

 

A formulação desse problema abriu caminho para várias outras questões menores, mas não menos importantes, tais como: quais e quantos são os constituintes prosódicos e melódicos pertinentes para a análise da palavra cantada? Quais são as propriedades de cada um desses constituintes? São esses constituintes organizados hierarquicamente? Em caso afirmativo, há isomorfismo entre hierarquia prosódica e hierarquia melódica? No presente ensaio nos deteremos sobre um aspecto da segunda questão. Discutiremos quais são as propriedades do acento na palavra cantada e como tais propriedades podem explicar as construções excepcionais, das quais vimos alguns exemplos na introdução a este trabalho. 

Em função desse objetivo, limitaremos nossa análise às três categorias mais baixas da hierarquia prosódica, ou seja, sílaba, pé e palavra fonológica. Veremos como a interação desses constituintes com estruturas musicais pode explicar a atribuição excepcional do acento que verificamos na palavra cantada. A categoria mais baixa da hierarquia prosódica é a sílaba (σ). Dado que o acento tem natureza relacional, ou seja, dado que o acento só se define por contraste sintagmático, toda sílaba é necessariamente portadora de acento, ainda que de diferentes graus. Sílabas organizam-se em pés (Σ), unidades da hierarquia prosódica que determinam a proeminência relativa de cada sílaba numa cadeia de duas ou mais delas. O conceito de pé é essencial na análise da atribuição do acento secundário numa sequência fonológica e guarda relação com o conceito de pulso em música. Por fim, a palavra fonológica (w) é um constituinte n-ário dotado de uma única sílaba proeminente sobre a qual incide o acento primário. Representando esses três constituintes com o modelo de Halle e Vergnaud (1987), vemos que (1) e (2) são duas realizações possíveis da palavra pro.fun.di.da.de

A diferença entre ambas reside na atribuição do acento secundário, uma sequência troqueu + troqueu em (1), e uma sequência dátilo + troqueu em (2). A relativa mobilidade do acento secundário contrasta com a imobilidade do acento primário: enquanto o acento secundário pode variar com certa liberdade ainda que dentro de certas restrições métricas – e a palavra cantada faz amplo uso dessa variação -, o acento primário pode deslocar-se em condições muito limitadas, como a da colisão acentual, por exemplo. Esse não é o caso de (3), onde inverte-se a distribuição dos pés (agora uma sequência troqueu + dátilo) e, mais importante, a sílaba DA perde o acento primário e desce à condição de sílaba não proeminente. Embora pro.fun.DI.da.de seja uma construção prosodicamente agramatical, não aceita no português falado, é assim que é cantada, nos versos de Divina Comédia Humana. Tudo ocorre como se na palavra cantada certas barreiras estabelecidas pelas regras fonológicas do português falado pudessem ser transpostas. Ao sobrepor texto e melodia, e instado por esta, o cancionista parece poder ir além dos limites do uso da língua. Daí a aparente agramaticalidade prosódica de algumas de suas construções. No que segue discutiremos algumas propriedades da interação entre constituintes prosódicos e “constituintes” melódicos. Adotaremos uma perspectiva botton up, procurando identificar quais elementos estruturais da melodia estabelecem relações com a sílaba, o pé, e a palavra fonológica, respectivamente, e de que modo o fazem.

 

2 Pareamento Métrico

 

A mais elementar das interações entre texto e melodia é de natureza métrica. A extensão da melodia deve ser compatível com a extensão do verso. Quando o cancionista cria a melodia para um verso preexistente, esta não pode ter uma extensão qualquer, ao contrário, há uma restrição métrica que determina um ajuste da extensão da melodia à do verso. Obviamente, a mesma restrição é válida para a composição de um verso para uma melodia preexistente. Considerando que a unidade elementar da enunciação linguística é a sílaba e que a unidade elementar da enunciação melódica é a nota, esse ajuste métrico consiste em alinhar uma determinada quantidade de sílabas à igual quantidade de notas. Via de regra, tal alinhamento é obtido graças aos processos de reestruturação que ocorrem tanto na cadeia silábica quanto na cadeia melódica: a cadeia silábica pode ser reduzida (apague σ) com o concurso de processos como degeminação, elisão, sinérese e haplologia , ou incrementada (insira σ) pela diérese e epêntese. A cadeia melódica, igualmente, pode ainda mais facilmente ser ajustada à cadeia silábica pelo simples apagamento (apague N) ou inserção (insira N) de uma ou mais notas.  

O alinhamento entre cadeia silábica e cadeia melódica é um princípio constitutivo da palavra cantada, ou seja, é universalmente válido para qualquer língua em qualquer idioma musical. Isso porque na palavra cantada não é possível pronunciar uma sílaba sem que a esta esteja associada uma, e apenas uma nota musical e, reciprocamente, não é possível emitir uma nota sem que a esta esteja associada uma, e apenas uma sílaba. O alinhamento nota/sílaba é, portanto, um dos princípios de boa formação da palavra cantada, e foi formulado por XXXXX XX (2021) nos seguintes termos:

(4) PAREAMENTO MÉTRICO – Na palavra cantada, cada terminal da cadeia melódica (N, nota) deve ser pareado a um, e apenas um, terminal da cadeia silábica (σ, sílaba) e vice-versa ” (XXXXX XX, 2021:7). 

O pareamento métrico afirma que a relação entre nota/sílaba na palavra cantada é necessariamente bijetiva, o que constitui uma importante diferença entre palavra cantada e palavra falada. Como mostra a fonologia autosegmental (Clements & Hume, 1995:247), na fala uma sílaba pode ser associada a um ou mais tons e um tom pode ser associado a uma ou mais sílabas . Na palavra cantada isso não é possível porque a relação nota/sílaba é forçosamente bijetiva. O quadro abaixo (Fig 2) representa esquematicamente essa diferença.

 

Figura 2

palavra falada palavra cantada
a associação bijetiva é uma das relações possíveis entre tom e sílaba a associação bijetiva é a única relação possível entre nota e sílaba

Fonte: elaboração própria

 

Na palavra cantada, uma sequência bem formada é constituída, portanto, por uma cadeia de notas musicais pareada bijetivamente a uma cadeia de sílabas. É o que se observa na canção Felicidade, de Lupicínio Rodrigues (fig. 2).

 

Figura 3 —  excerto de Felicidade (Lupicínio Rodrigues)

 

Fonte: Elaboração própria

 

Essa relação bijetiva nota/sílaba pode ser melhor visualizada num diagrama estrutural como o da Fig. 4. Nessa representação N simboliza uma nota não especificada, * simboliza um slot rítmico não preenchido, e | simboliza uma linha de associação nota/sílaba.

Figura 4 – excerto de Felicidade (Lupicínio Rodrigues)

 

Fonte: Elaboração própria

O fragmento, com treze sílabas (e com igual quantidade de notas) poderia ser ressilabificado de modo a totalizar quatorze ou quinze sílabas. Para que o pareamento métrico não seja violado, é necessária a elisão em (se.em > sem) e em (ra.e > re). Evidente que esses processos já ocorrem na fala natural e na escansão poética. No entanto, não são raras as situações em que a perda ou o incremento de material fonético resulta de reestruturações excepcionais, que não ocorrem na fala. Por exemplo, em Valsa brasileira, a reestruturação (fil.me, a.ação > fil.mja.ção) é prosodicamente agramatical porque, dada a anástrofe (“como de um filme, a ação que não valeu” versus “como a ação de um filme que não valeu”), e dado que a fonologia tem acesso à sintaxe (Abaurre, 1996), faz-se necessária uma pausa entre os versos (um filme//a ação). Consequentemente, a ditongação (fil.mja) deveria ser bloqueada, o que não ocorre quando a canção é interpretada por Chico Buarque. No entanto, é graças a essa estranha ditongação que o verso, de onze sílabas (4.2), pode ser reduzido (apague σ) e pareado à melodia de dez notas (4.3). 

 

 

Fonte: Elaboração própria

 

Já em Aquele abraço, de Gilberto Gil, ocorre o incremento de material fonético (insira σ) por uma espécie de epêntese silábica (mjes.que.CEU > mjes.que.CE.eu; já.me.DEU > já.me.DE.eu), de modo que o verso de sete sílabas possa ser pareado à melodia de oito notas.

Figura 5 excerto de Aquele abraço (Gilberto Gil)

 

Fonte: Elaboração própria

 

Embora possa parecer que estamos diante de algo semelhante à escansão das sílabas poéticas utilizada na versificação, convém considerar a seguinte observação de Saad Ali, 

 

“Na contagem de sílabas do interior do verso fundem-se frequentemente em sílaba única a terminação vocálica átona e o início vocálico da palavra imediata. Costuma-se dizer que houve “absorção” ou “elisão”, exigida pela técnica versificatória, como se o fenômeno fosse alheio ao falar de todos os dias. Se absorver, elidir, significam eliminar, suprimir ou incorporar uma coisa em outra, não se dará isso senão em caso de serem as vogais em contato iguais ou parecidas. Não há com q’amor, led’e cego, porqu’as mãos senão por hipótese. Ninguém lê verso diferentemente da prosa comum, absorvendo vogais em cada linha. Nem há jeito de dar sumiço a algum dos fonemas em já a luz, no assento, e os barões, etc. E, apesar de tudo isso, sem fazermos violência à expressão usual, os versos soam com o número exato de sílabas e o desejado movimento rítmico”. 

Os dados mostrados até aqui indicam que na palavra cantada o pareamento métrico reestrutura a cadeia silábica nos moldes de uma escansão, com a importante diferença que a “violência à expressão usual” de que fala Ali pode ocorrer, como mostram os exemplos acima

 

3 Defasagem  rítmica

 

O pareamento métrico faz referência apenas às unidades terminais, nota e sílaba, sem especificá-las. Ou seja, do ponto de vista métrico, basta que uma cadeia silábica qualquer seja alinhada a uma cadeia melódica qualquer – respeitando-se a relação biunívoca nota/sílaba -, para que a palavra cantada seja bem formada. O que se tem no nível dos terminais, portanto, é uma cadeia de sílabas subespecificadas pareada a uma cadeia de notas igualmente subespecificadas. 

Ocorre que tanto a cadeia silábica quanto a cadeia melódica são ritmicamente estruturadas, uma vez que ambas são portadoras de proeminência relativa. Por essa razão, o pareamento métrico entre sílaba e nota pressupõe uma interação rítmica, na qual toda e qualquer sílaba – necessariamente proeminente ou não proeminente – associa-se a uma nota – necessariamente proeminente ou não proeminente (fig. 6). 

 

Figura 6 — dimensão métrica e rítmica na interação nota/sílaba

 

Fonte: elaboração própria

Dado que a proeminência relativa mobiliza o mesmo material fonético em ambas as cadeias, a saber, a maior ou menor duração e intensidade da sílaba e da nota, e dado que pé e pulso existem independentemente um do outro, determinando o ritmo silábico e ritmo melódico respectivamente, temos, em princípio, dois cenários possíveis resultantes da sobreposição texto/melodia na palavra cantada: 

(i) a rítmica melódica pode estar em fase com a rítmica verbal, com todas as sílabas proeminentes alinhadas a notas proeminentes e vice-versa

(ii) a rítmica melódica e verbal podem estar fora de fase, com uma ou mais sílabas proeminentes alinhadas a notas não proeminentes e vice-versa.

Vejamos alguns exemplos desses possíveis cenários. Faremos isso adicionando ao diagrama estrutural  informação sobre o pé e o pulso. Diremos que uma nota é proeminente quando ocupa a coluna de um pulso (P), caso contrário a nota será não proeminente. Uma coluna preenchida por uma nota e um pulso representa uma posição rítmica proeminente e uma coluna preenchida apenas por uma nota representa uma posição rítmica não proeminente. Uma sílaba é proeminente quando é cabeça de um pé métrico (Σ) e porta acento primário ou secundário. Esquematicamente (fig 7):

Figura 7 — relação pé/pulso

 

Fonte: elaboração própria

A figura 8 retoma o excerto de Felicidade, de Lupicínio Rodrigues, já apresentado na fig. 4, mas agora acrescentando informação sobre o alinhamento entre pé e pulso. 

 Figura 8 -excerto de Felicidade (Lupicínio Rodrigues)

 

fonte: elaboração própria

 

Observa-se que sílabas proeminentes, portadoras de acento primário ou secundário (LI, DA, FOI, BO) estão associadas aos pulsos, enquanto as sílabas fracas de palavras lexicais (fe, ci, ra) e de palavras funcionais (de, se) que não constituem domínio de atribuição de acento (Selkirk, 1996), não estão alinhadas aos pulsos. Nesse excerto, portanto, as proeminências da cadeia melódica e silábica estão em fase. 

Já na figura 8, que apresenta o diagrama estrutural do primeiro verso de Cajuína transcendental (Caetano Veloso), das seis notas sobre as quais incidem os pulsos, duas associam-se a sílabas portadoras de acento primário ou secundário (RÁ, TI), duas a sílabas fracas de palavras lexicais (xis, mos) e duas a palavras funcionais (os pronomes que e se). Nesse verso, portanto, as proeminências da cadeia melódica e silábica estão parcialmente em fase (RA, TI) e parcialmente fora de fase (xis, mos, que, se) .

Figura 8 –  excerto de Cajuína transcendental (Caetano Veloso)

fonte: elaboração própria

Por fim, a figura 8 apresenta o diagrama de Capim, de Djavan, canção em que a quantidade de pulsos associados a sílabas não proeminentes (8) supera a de pulsos associados a sílabas proeminentes (4). Não por acaso, trata-se de uma canção reconhecidamente difícil de cantar.

 

Estes exemplos, extraídos dentre muitos outros possíveis, ilustram o que parece ser o mecanismo subjacente à interação rítmica entre texto e melodia na palavra cantada. Vimos que no pareamento métrico cada nota da melodia deve ser pareada a uma única sílaba da cadeia silábica e vice-versa. Trata-se de uma relação bidirecional entre sílaba e nota. Quando consideramos constituintes imediatamente superiores, como o pé e o pulso, temos, ao contrário, uma relação unidirecional na qual a estrutura rítmica da melodia projeta-se sobre a cadeia silábica reestruturando-a, de modo que a sílaba alinhada ao pulso torna-se necessariamente proeminente. Se retomarmos alguns dos exemplos dados no início deste ensaio, teríamos:

 

4 Pareamento rítmico

Vimos até o momento que a cadeia melódica é uma hierarquia composta de notas (N) ritmicamente estruturadas por pulsos (P) e que a cadeia silábica é constituída por sílabas (σ) ritmicamente estruturadas por pés (Σ); os dados observados até aqui indicam que, quando sobrepostas na palavra cantada, a cadeia melódica projeta sua estrutura rítmica sobre a cadeia silábica e que, caso essas estruturas não sejam isomorfas, a cadeia silábica é reestruturada de modo a ajustar-se ritmicamente à cadeia melódica. É curioso notar que, à primeira vista, estamos diante de um deslocamento acentual, e foi esse o termo que empregamos na abertura deste ensaio. Mas já observamos em outro lugar (XXXX,xxxx) que não se trata disso, uma vez que, de fato, em nenhum dos casos observados há ambiente para esse processo fonológico. O ambiente para a retração é a colisão acentual (ABOUSALH, 1997), fenômeno que se dá entre duas sílabas adjacentes, portadoras de acento primário e pertencentes a palavras de uma mesma frase fonológica, como em (caFÉ QUENte > CAQUENte) ou (JeSUS CRISto > JEsus CRISto). Não é o caso em (e.xis.TIR.mos > e.xis.tir.MOS) ou em (pro.fun.di.DA.de > pro.fun.DI.da.de). Em outras palavras, embora nesses dois casos de fato ocorra o deslocamento do acento, não se pode afirmar que se trata do mesmo fenômeno que conhecemos como retração acentual na fala natural.

Parece-nos que a hipótese mais promissora para explicar a ocorrência desse fenômeno é a de que a sobreposição entre cadeia melódica e cadeia silábica obedece aos mesmos princípios que governam as relações entre prosódia e segmentos, tal como proposto pela fonologia autossegmental.  Goldsmith sustenta que essa relação é regida por uma condição de boa formação, formulada nos seguintes termos:

WFC well-formedness condition

  1. cada tom está associado a ao menos um segmento;
  2. cada segmento está associado a ao menos um tom;
  3. linhas de associação ligando tons e segmentos não podem cruzar

 

Já vimos que na palavra cantada (1) e (2) apresentam uma formulação ainda mais restrita, dado que a relação entre os terminais, nota e sílaba, é bijetiva (ver item 2). Se admitirmos que as linhas de associação ligam não apenas os elementos terminais, mas também constituintes superiores, como é o caso do pulso (P) e do pé (Σ), e que estes também estão sujeitos à (3), temos um caminho promissor para explicar o deslocamento do acento na palavra cantada. Sob esse ponto de vista, há em Cajuína um evidente cruzamento de linhas de associação, uma vez que, de fato, o ritmo da melodia é um iambo (* X) e o ritmo do verso é um troqueu (X *). A sobreposição dessas estruturas é vedada por (3). Como, segundo Goldsmith, “o fato de que as linhas de associação não podem se cruzar é um aspecto da teoria que nunca pode ser violado”, o ajuste entre ritmo silábico e ritmo melódico dá-se em favor deste último. Assim:

 

cada sílaba proeminente da cadeia silábica é preferencialmente pareada a um pulso da cadeia melódica;

 

observados (i) e (ii), sílabas não proeminentes podem ser livremente pareadas a pulsos.

Chamaremos essa interação entre sílabas e os pulsos da melodia de pareamento rítmico

(5) PAREAMENTO RÍTMICO – Na palavra cantada, toda sílaba alinhada a um pulso (P) é necessariamente proeminente. 

O pareamento rítmico é unidirecional. A estrutura rítmica da cadeia melódica projeta-se sobre a cadeia silábica, reestruturando-a ritmicamente. É essa projeção do melódico sobre o verbal que observamos em todas as construções excepcionais que observamos no início deste trabalho.

Em suma, o Pareamento Rítmico afirma que

  1. A cadeia melódica é uma hierarquia composta de notas (N) ritmicamente estruturadas por pulsos (P);
  2. A cadeia silábica é constituída por sílabas (σ) ritmicamente estruturadas por pés (Σ);
  3. Quando sobrepostas na palavra cantada, a cadeia melódica projeta sua estrutura rítmica sobre a cadeia silábica;
  4. Caso não sejam isomorfas, a cadeia silábica se reestrutura e ajusta-se ritmicamente à cadeia melódica;

 

Diremos que o pareamento rítmico é ótimo quando sílabas proeminentes são associadas a notas metricamente fortes, e sílabas não proeminentes são associadas a notas metricamente fracas (2); caso contrário diz-se que o pareamento rítmico é não-ótimo (3). 

 

(2) (3)

  N+ac   N-ac   N-ac   N+ac

| | | |

σ+ac σ-ac σ+ac σ

 

Halle e Dell especificam essa relação entre proeminência linguística e musical nos seguintes termos:

 

(5) Desalinhamento acentual: sejam S e s duas sílabas quaisquer, em qualquer ordem, e seja S acentuada e s não-acentuada. Haverá um desalinhamento acentual se S e s forem sílabas adjacentes num mesmo verso e o pulso incidir sobre s mas não incidir sobre S.” (Halle & Dell, 2009:6) 

 

Desse modo, diferentemente do pareamento métrico, o pareamento rítmico é violável. é uma associação fraca entre ritmo melódico e ritmo da fala. 

 

5 Pulso e compasso

 

O constituinte prosódico que determina a distribuição de proeminências na cadeia silábica é o (Σ) (Collischonn, 1994). Na melodia, dois constituintes desempenham função semelhante, o pulso e o compasso. O pulso é a unidade básica de tempo de uma melodia, servindo de referência para as unidades rítmicas de maior extensão (o compasso) assim como para suas divisões. Espécie de “grau zero” da acentuação melódica, o pulso coincide com o lugar em que batemos palma ao cantar uma melodia. Já o compasso é o constituinte que agrega dois ou mais pulsos, situando-se, portanto, numa posição hierarquicamente superior a estes. Como bem observa Massini-Cagliari,  não escapou à teoria linguística a correspondência entre e compasso:

“Desta forma, da hierarquia entre os tempos do compasso, em música (o primeiro tempo do compasso é sempre considerado “forte” e os demais “fracos” – ou em alguns casos, de força relativa ou ”mezzo-forte”), resulta, por analogia, a definição fonética de pé: unidade de duração compreendida entre duas tônicas (incluindo a primeira e excluindo a segunda”).

 

No entanto, há razões para pensar que o pulso guarda uma estreita relação com o acento secundário, enquanto o compasso associa-se ao acento primário e ao acento principal de uma sequência fonológica. Vejamos, por exemplo, como se distribuem as proeminências nos três versos iniciais de “Valsa brasileira”, de Chico Buarque (Fig.7).

Figura 7 — excerto de Valsa (Chico Buarque)

Fonte: elaboração própria

 

  1. os pulsos da melodia (P), representados na linha imediatamente acima da linha das notas  (N), ocorrem a cada duas notas. À nota associada ao pulso é atribuído o valor (+) proeminente, à nota não associada ao pulso é atribuído o valor (-) proeminente. Dessa distribuição iterativa das notas resulta uma rítmica binária;
  2. os pulsos se organizam em grupos de três, ou seja, a cada três pulsos, ao primeiro é atribuído o valor (+) proeminente e aos demais o valor (-) proeminente. Essa distribuição iterativa de pulsos constitui um compasso ternário, que na figura é representado pelos algarismos 1, 2, e 3 imediatamente acima da linha dos pulsos;
  3. sílabas proeminentes são associadas aos pulsos;
  4. sílabas não-proeminentes ocorrem no intervalo entre dois pulsos adjacentes;
  5. sílabas proeminentes que recebem o acento principal de uma sequência fonológica (no caso, uma frase entoacional), como CAR, TI e TEM, são associadas aos pulsos aos quais é atribuído o valor (+) proeminente;
  6. embora Valsa brasileira seja uma canção em ritmo ternário (uma valsa!), a distribuição das proeminências silábicas é binária (no caso específico, um pé iambo). A melodia segue a mesma distribuição binária (compasso simples). 
  7. a tabela 1 sintetiza esses fatos:

tabela 1

COMPASSO divisão ternária 2 3 1
PULSO divisão binária x X x X x X
vi VI a TE bus CAR
por QUE pen SAN dwen TI
cor RI a CON traw TEM po

 

Vejamos agora como se distribuem as proeminências em dois versos da canção Bandolero, interpretada por Ney Matogrosso (Fig.8).

  1. os pulsos da melodia (P) ocorrem a cada três notas. À nota associada ao pulso é atribuído o valor (+) proeminente, às notas não associadas ao pulso é atribuído o valor (-) proeminente. Dessa distribuição iterativa das notas resulta uma rítmica ternária;
  2. os pulsos se organizam em grupos de dois, ou seja, a cada dois pulsos, ao primeiro é atribuído o valor (+) proeminente e ao segundo o valor (-) proeminente. Essa distribuição iterativa de pulsos constitui um compasso binário, que é representado pelos algarismos 1 e 2 imediatamente acima da linha dos pulsos;
  3. sílabas proeminentes são associadas aos pulsos;
  4. sílabas não-proeminentes ocorrem no intervalo entre dois pulsos adjacentes;
  5. sílabas proeminentes que recebem o acento principal de uma sequência fonológica (no caso, um enunciado), como SI e DÃO, são associadas aos pulsos aos quais é atribuído o valor (+) proeminente;
  6. embora Bandolero seja uma canção em ritmo binário, a distribuição das proeminências silábicas é ternária (um pé dátilo). A melodia segue a mesma distribuição ternária (compasso binário composto). 

 

tabela 2

COMPASSO divisão binária 1 2 1 2 1
PULSO divisão ternária X x x X x x X x x X x x X
E se fa LAS ses ma GI a so NHWE fan ta SI a
E se fa FAS ses en CAN to que BRAN twe con DÃO

 

Esses exemplos mostram uma interessante analogia estrutural entre cadeia fonológica e cadeia melódica. Assim como a linguística compreende o acento como uma proeminência “que nasce da relação entre… sílaba (σ), pé (Σ) e palavra fonológica (ω)” (MATZENAUER, 2005:70), a distribuição de proeminências na melodia é determinada pela interação entre nota, pulso e compasso. 

 

O foco do presente ensaio é o acento secundário na palavra cantada e, pelo que vimos até aqui, o principal constituinte melódico responsável pela organizaçãoque governa a 

 

Observa-se também que sílabas não proeminentes podem ser pareadas a pulsos que, à primeira vista, o compasso musical parece cumprir essa função. De fato, o compasso delimita um conjunto de notas musicais e atribui a estas proeminência relativa. Além disso, compassos são binários, ternários ou uma combinação destes. O compasso se apresenta, portanto, como um forte candidato ao papel de estruturador rítmico da melodia, desempenhando aí uma papel comparável ao do pé prosódico.   Pode-se pensar, ao contrário, que o compasso desempenha tal função, uma vez que a organização rítmica da melodia, por mais complexa que seja, pode sempre ser construída a partir das formas elementares, o compasso binário e o compasso ternário. Vejamos este ponto mais de perto. Uma canção como Eu te amo (Chico Buarque e Tom Jobim)

 

: Essas sílabas são interjeições (Ah!), núcleos de palavras lexicais (advérbios (já), verbos (per.DE.mos) e substantivos (no.ÇÃO e HO.ra)) que a figura 7b acrescenta a representação da linha de pulsos da melodia. Observa-se que todas as sílabas proeminentes são pareadas a um pulso (CRA.vo; bri.GOU; RO;sa; sa.CA.da), com uma única exceção (diU.ma > diu.MA).  

 

Sendo os compassos básicos  O ritmo melódico, igualmente, alterna notas proeminentes e não proeminentes. 

Compasso     2       1       2       3       1

P              P       P       P       P       P

N N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N

|   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   

                                         Ah!

Se JÁ  per DE  mos  A  no  ÇÃO da  HO  ra

Se JUN tos JÁ  jo  GA  mos TU  do  FO  ra

Me CON ta  GO  ra  CO mwej DE  par TIR 

 

 

Compasso 1       2       3       1       2       3

Pulso (pé) P       P       P       P       P

N N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N   N

|   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   |   

     Ah!         Se JÁ  per DE  mos  A  no  ÇÃO  da 

     HO  ra      Se JUN tos JÁ  jo  GA  mos  TU  do

     FO  ra      Me CON ta  GO  ra  CO mwej DE  par

     TIR