TRANSCRIÇÃO
Diz o conhecido aforismo saussuriano que “…é o ponto de vista que cria o objeto”, ou seja, a partir de um mesmo objeto empírico, diferentes objetos teóricos podem ser criados, a depender unicamente do ponto de vista adotado. O estabelecimento de um domínio científico depende portanto de uma triagem do dado bruto de origem submetido à observação. O objeto empírico da investigação que ora iniciamos é a canção popular. O ponto de vista a partir do qual esse objeto empírico é observado é o da significação. A projeção desse ponto de vista sobre o objeto empírico canção popular resulta num objeto teórico, a palavra cantada.
O objeto teórico é, por princípio, uma redução do objeto empírico. Afinal, todo ponto de vista é sempre uma mirada, uma delimitação, ou como preferimos, uma triagem a que o objeto empírico é submetido. Para que a pergunta sobre a significação possa ser respondida com objetividade é necessário que selecionemos no objeto empírico apenas aqueles elementos pertinentes para a construção do sentido. Em outras palavras, submetemos o objeto a uma triagem que separará aquilo que é pertinente daquilo que não é. É esse processo de triagem que denominamos transcrição.
Toda transcrição é seletiva. Fundada numa metalinguagem especificamente desenvolvida para tal, constituída de um corpo de conceitos e de um sistema de notação próprios, a transcrição extrai (ou deriva) do objeto empírico os elementos pertinentes para a construção do sentido e, assim, cria um objeto teórico. É o método de transcrição que fornece a matéria prima da análise. A análise da palavra cantada requer uma metalinguagem que lhe seja especificamente dedicada, um sistema de conceitos que nos permita construir hipóteses sobre a maneira pela qual a materialidade da palavra e da música, sincretizadas na canção, criam efeitos de significação próprios, efeitos que ultrapassam aqueles criados pela palavra e pela música isoladamente.
Esta é constituída, via de regra, por um corpo de conceitos, um método de transcrição e um sistema de notação próprios. É exclusivamente por meio desse aparato simbólico-conceitual que se define o que é pertinente (o domínio do objeto) e o que não o é (o domínio do abjeto). E uma vez estabelecida a metalinguagem, algo pode ser dito do objeto (pois temos as palavras), mas nada pode ser dito do abjeto (pois nos faltam as palavras).
Essa delimitação é necessária para que possamos delinear a problematização que pode ser feita sobre o objeto, e, a partir desta, a diretriz metodológica mais apropriada. Assim, a delimitação do objeto teórico determina a metodologia de análise Ainda que provisória (uma vez que funda-se numa hipótese a ser desenvolvida adiante), a definição que propomos procura ser fiel a esse propósito:
Palavra cantada é uma variante da palavra falada na qual os supressegmentos são compostos por duas cadeias, a cadeia prosódica e a cadeia melódica.
A partir dessa definição fica claro que investigar a palavra cantada consiste em descrever a constituição de três cadeias, silábica, prosódica e melódica, e a interação entre estas. Como veremos adiante, a forma final da cadeia silábica é determinada, em última instância, pela mútua interferência que prosódia e melodia exercem entre si.
Esse interferência decorre da natureza comum compartilhada por ambas. Prosódia e melodia nada mais são que diferentes maneiras de estruturar o mesmo material sonoro. Sons com altura, duração e intensidade constituem a matéria prima de ambas Ou seja, na palavra cantada, a prosódia (o tom, o acento e a entoação) é permutada pela melodia (a nota, o pulso rítmico, e o contorno melódico. Nada se perde, nada se ganha, apenas que muda o modo como certos elementos comuns à fala e ao canto – os traços altura, duração e intensidade – se organizam em unidades hierarquicamente superiores, e que são específicas da prosódia (fala) e da melodia (canto) enquanto sistemas distintos.
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- Numa primeira aproximação os elementos pertinentes dividem-se em duas classes:
- (i) constituintes melódicos (nota, pulso rítmico, célula harmônica, cadência) e
- (ii) constituintes prosódicos (sílaba, pé, frase fonológica, frase entoacional);
- Numa primeira aproximação os elementos pertinentes dividem-se em duas classes:
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Tome-se, por exemplo, apenas o traço altura. Na fala, a altura é a categoria definidora da entoação, que, no português brasileiro, pode ser descrita como um sistema de dois tons, alto (H) e baixo (L), a partir dos quais formam-se eventos tonais (monotonais ou bitonais), os quais podem constituir tons de fronteira (L%, H%), acentos tonais (L*, H*) ou tons de constituinte (L-, H-). Na música, diferentemente, a altura é a categoria definidora do contorno melódico, e organiza-se num sistema de doze tons (escala cromática), os quais estruturam-se em células melódicas, que por sua vez constituem frases melódicas. É claro que a duração e a intensidade são também objeto de uma estruturação semelhante e, juntamente com a entoação, compõem o que conhecemos como prosódia (fala) e melodia (música).
Desse modo, a hipótese de que a palavra cantada seja uma variante da palavra falada justifica-se porque qualquer cadeia segmental pode ser recoberta por uma cadeia suprassegmental prosódica (quando então torna-se fala) ou melódica (quando então torna-se canto) ou, ainda, por uma sobreposição de ambas, fato muito comum observado na música popular brasileira. Essa hipótese parece congruente com o fato de que não há palavra cantada na qual a prosódia não seja afetada pela melodia ou em que a melodia não seja modificada pela prosódia. Daí a pertinência da questão de saber se essa mútua interferência está ou não sujeita a uma gramática. Numa análise preliminar de cerca de uma centena de canções populares, verificamos que a palavra cantada obedece a certas condições de boa formação que constituem o que poderíamos chamar de uma quase-gramática, um conjunto de regras para o alinhamento ou associação entre constituintes prosódicos e unidades melódicas. Essas análises indicam que há um sistema subjacente à interação entre proeminências linguísticas (o acento lexical, tonal e entoacional) e as prominências melódicas (a marcação do pulso, o núcleo das células rítmicas e o núcleo das células harmônicas).
Pela natureza de seu objeto uma Gramática da Palavra Cantada situa-se numa região de fronteira entre a prosódia, a musicologia gerativa e a semiótica. Toma como referência da primeira a teoria dos domínios prosódicos da fonologia prosódica de Nespor&Vogel (1986) e a fonologia entoacional de Ladd (1996); da segunda, retém certas assunções sobre as estruturas musicais hierárquicas (Schenker, 1979 e Lerdahl & Jackendoff, 1983) e sobre a chamada phrase structure analysis (Schoenberg, 1996); por fim, linguística e musicologia são integradas à semiótica (Tatit, 1996), uma vez que o objetivo último da investigação é compreender como o sentido melódico é engendrado tomando por base de análise a canção popular.